"Os homens que jamais fizeram bobagem,
tão pouco fazem nunca algo de interessante".
(Provérbio inglês)
1ª PARTE:
Leitor amigo e exigente, venho convidá-lo a desvendar o universo de aventuras do poeta Mário Gomes, misto de boêmio, malandro e mendigo que, por seu espírito irrequieto, nômade e inconstante, viveu experiências as mais fabulosas, dignas de figurarem nas estórias dos maiores ficcionistas ou biógrafos, e cuja riqueza romanesca detectei desde o dia em que o conheci. Conquanto me faltem, para tanto, engenho e arte, lanço-me ao desafio de narrar suas peripécias e proezas, na certeza de que o itinerário existencial de Mário Gomes tem episódios que fazem lembrar o de um cavaleiro andante, o próprio fidalgo da Mancha, de triste figura, cujas façanhas imortalizou o grande Cervantes. Lembra, também, talvez, os artistas errantes da "beat generation", ou os da legenda dos rapsodos peregrinos da Idade Média, ou ainda os da mística oriental, aqueles monges de certa linha zen budista, cuja inspiração provém de intérminas itinerâncias e de um modo de vida à margem dos hábitos e costumes da sociedade de seu tempo. Lembraria também os grandes persas Hafiz e Omar Kayan, ou o chinês Li Po, ou mesmo o nosso Caio Cid, que fizeram do vinho sua fonte de inspiração. Segundo os mencionados persas, é na embriaguês que a razão salva o seu navio do abismo do infortúnio: "sem o rosto róseo da bem amada, quem pode dizer bela a rosa, e sem um copo de vinho, quem pode dizer a primavera doce? Assim falava Hafiz, e certamente Mário Gomes endossa e assina, como primeiro fiador, essas palavras líricas e também as de Caio Cid: "és o nirvana, és a mansão dileta, em cuja sombra esqueço a dor presente". Isso disse, elogiando a boemia e a companhia da noite, como atributos essenciais da vida de poetas de sua estirpe.
Não tenho, repito, a luminosidade dos grandes narradores que, como Cervantes, Kerouak ou Machado de Assis, imprimiram universalidade aos tipos que foram alvo de suas verves. Nem mesmo originalidade posso demonstrar, se a estória que conto ouvi do próprio biografado. Mas o meu personagem, este sim, penso ter a profundidade espiritual de um dos renomados protagonistas das novelas de um Dostoievsky, de um Balzac ou de um Victor Hugo. E é por isso que julgo relevante contar a vida do formidável Mário Gomes, cuja figura cativante, de carisma e simplicidade naturais, de aspecto bonachão, de "bon vivant" sem méritos e de anti-herói por excentricidade, impressiona a todos os que o vêem ou escutam. Sobretudo se lhe ouvem recitar alguns dos seus poemas burlescos, que pouco ficam a dever à expressão monumental de Bocage e de Gregório de Matos, plenos de humanismo e com uma linguagem absolutamente primitiva. O poeta, quando nasce com o dom da inspiração, prescinde até mesmo de uma formação cultural acadêmica ou livresca. Do contrário não encontraríamos autêntica poesia em repentistas da estirpe de um Oliveira de Panelas ou de um Otacílio Batista, nem na capacidade criadora de um Patativa do Assaré, que tanto nos encantam pelo dom de sentir as verdades essenciais da vida e transmiti-las com o verbo mágico da síntese ritmada.
Mário Gomes, desde a infância, considerou monótona a vida na província e sempre sentiu o incontido anseio de percorrer o mundo para aprender novas formas de viver e recolher as flores de sua inspiração poética. Conhecer novas cidades, ruas exóticas, praças diferentes daquela que sempre freqüentou, a Praça do Ferreira, onde estabeleceu-se cotidianamente, todas as tardes, acompanhado de um grupo de colegas de ócio, desde o tempo em que se vem devotando à poesia. Alimentou sempre o ideal de conhecer os bairros exóticos, diferentes do periférico e proletário Bom Sucesso, onde vive há mais de quatro décadas, outras praias, outras noites com seus bares cheios de poetas boêmios e garotas bandidas, poetisas aventureiras, etc. Por isso, apesar de sentir júbilo em haver nascido em terra cearense, sua alma de boêmio determinou que viajasse, com ou sem condições financeiras, pelas principais capitais do Brasil, onde encontraria o ânimo da urbanidade e a vida noturna que lhe alimentassem a insaciável sede de experiências inauditas. Na terra de Castro Alves, por exemplo, buscou contacto com artistas, boêmios, malandros e aventureiros na cidade de Salvador, onde viveu algumas de suas grandes e perigosas aventuras. E no Rio de Janeiro, cidade das maravilhas, na geografia como na beleza de suas mulheres, o poeta foi também algumas vezes à procura de inspiração. Passeou pelas praias, bebeu nos bares e apreciou as mulheres mais belas do mundo, as cariocas. Tentou em vão encontrar o poeta Vinícius de Morais nos bares de Ipanema e de Copacabana. Tudo era pretexto para viajar de qualquer maneira, de ônibus, quando ganhava a passagem de presente de algum amigo, de carona ou mesmo a pé, pois nunca tinha grana suficiente. Considerava o Rio de Janeiro o paraíso da poesia, habitado pelo deus da lírica e do romantismo, o carismático e cortejado Vinícius, com quem poderia desfrutar de um bom papo na base do uísque, que certamente o imortal poeta não hesitaria em oferecer a Mário, ou da cachaça, caso o encontrasse numa rua da Lapa, o que Mário seguramente apreciaria muito mais. Viajar é, sem dúvida, uma fonte de inspiração. Por isso, percorreu também, de ônibus, a pé ou de carona, as estradas que conduzem a São Paulo e Belo Horizonte, deslocando-se àquelas cidades em várias ocasiões, e tendo experimentado situações esdrúxulas, insólitas e sofridas, mas curtidas com estoicismo e êxtase, pois o importante era realizar o sonho andarilho e viver novas e inusitadas experiências. Um poeta não deve confinar-se ao seu escritório de trabalho ou a seu quarto de estudos. Há que sair pelas ruas, freqüentar os bares e as praças, contemplar as mais diferentes paisagens, sentir a grandeza do universo em seu pensamento, e, se possível, tentar entender como na natureza estão contidos os planetas e as galáxias e sentir na própria alma a expansão do mundo e das idéias.
A duras penas deu vazão ao seu gosto pela vida sem fronteiras, pela liberdade sem limites. Seu ideal de viver intensamente e viajar sem sossego se realizou, apesar de haver encontrado, na adolescência, um freio implacável, na figura autoritária de seu pai, homem simples, de classe média-baixa, motorista de táxi, cuja concepção moral chegava ao extremo de uma justiça inflexível e mesmo cruel. Por outro lado, teve na presença materna exemplo de bondade e pureza, que herdou, e ainda hoje demonstra em seu relacionamento com os seres humanos, apesar de, aparentemente, ter-se comportado, em alguns momentos de sua vida, com a mais absoluta irresponsabilidade, o que a meu ver é perdoável, em se tratando de um poeta. Pois bem. Seu pai, o Sr. Benedito Ferreira Gomes, certamente bem intencionado, queria fazer do Mário um homem trabalhador e responsável, mas adotava, como princípio fundamental em sua concepção de vida, a proibição taxativa do direito a que os filhos entrassem em casa após as 10 horas da noite. Este mandamento paternal passou a incomodar Mário a partir da adolescência, quando todo jovem anseia por libertar-se do jugo dos pais. O desentendimento entre ambos, em razão da hora de chegar em casa à noite, foi o motivo para que seu pai o expulsasse de casa, desencadeando um processo de desvínculo do poeta com os ritos formais da sociedade. Segundo Mário, o seu pai, apesar de ter sido muito rígido em sua educação familiar, era um bom sujeito, pois manteve a família, até o dia em que partiu de casa, com os recursos indispensáveis para a sobrevivência. E isso, em sua opinião, é exemplo de bondade e ensino do caminho do bem. Com ele aprendeu a nunca mentir. Um dia o velho o chamou de vagabundo. Mário ficou triste e traumatizado. Mas foi uma profecia, afirma o poeta, pois ainda hoje continua vagabundo. De fato, Mário, que já possuía um emprego, trabalhando como professor em escola primária, depois do episódio da expulsão de casa, abandonou o magistério e passou viver como um cigano ou um mendigo, a dormir nas ruas, alimentando-se mal, ingerindo bebidas como um alcoólatra. Como o poeta declara, por causa de seus vícios, tornou-se um suicida em potencial. Fez da morte sua amante predileta. Considera-a "uma criatura adorável", pois ela pode nos proporcionar o estado sublime de não sentir mais dores, nem sede, nem fome, nem raiva, nem tédio, nem angústia e nem ser obrigado a tomar banho ... nada enfim ... "A morte é uma passagem para a vida sem o destaque de dores, pancada na canela e chifre".
O incidente com o genitor apenas aguçou-lhe a tendência à vida livre de compromissos ou o seu compromisso radical com a máxima liberdade possível. Mas o poeta teve de pagar com sofrimento sua desmedida coragem e seu gosto excessivo pela aventura. Foi submetido a quase todos os métodos de tortura e violência criados pela crueldade da sociedade deste século, com suas sofisticações tecnologicamente elaboradas. No hospício de Parangaba, por exemplo, quando tinha 20 anos de idade, Mário levou 12 choques elétricos. Foi preso diversas vezes, e nos cárceres onde esteve, sondou a profundidade dos abismos da alma humana, e hoje detém o conhecimento de uma espécie de psicólogo formado na universidade do mundo.
Na época de suas viagens, prisões e recolhimentos em manicômios, já começara a adotar a conduta boêmia e já escrevera os seus primeiros poemas. A propósito, um fato engraçado na vida do poeta foi a observação feita por uma antiga namorada, a Valdora, que, após três meses de namoro e ao perceber-lhe a tendência errática e dissoluta, disse-lhe uma frase que foi como uma revelação, inclusive inspirando-lhe um poema. Chamou-o de cachorro vira-lata, porque notou que Mário não gostava de trabalhar, e só fumava e comia quando pedia a alguém. Quando Mário chegou em casa escreveu: "sou um cachorro vira-lata. Não tenho residência fixa, não tenho responsabilidade. Também não me falta sexo porque conheço lindas cadelas de tipos diversos. Onde chego procuro alimentos. Fumo à hora que me é propícia, um cigarrinho, com filtro ou sem. Sou um cachorro valente. Mas só na aparência, pois sou um cachorro vira-lata."
Um «curriculum vitae», escrito pelo próprio poeta, para um concurso municipal de poesia, se resume no seguinte: Mário Ferreira Gomes. Nasceu em Fortaleza no dia 23 de julho de 1947. Concluiu o primário no Grupo Paulo Eiró em São Paulo. Fez o secundário no Curso Humberto de Campos. Foi professor do antigo curso de Admissão ao Ginásio, na escola Albaniza Sarazate. Iniciou o curso de Arte Dramática na UFC, sem concluí-lo. Tendência às artes plásticas e caricatura. Tornou-se autoditada e boêmio.
Mário conseguiu emprego de professor no Colégio Albaniza Sarazate no dia em que o diretor da escola o viu rindo de um cego que dava aulas e propôs-lhe um desafio: que se colocasse no lugar de professor para ver como não era fácil. Caso Mário fracassasse, seria, como castigo, exposto ao escárnio de todo o colégio. Aceitou o desafio e, após o êxito alcançado, chegou a passar dois anos naquele estabelecimento escolar, dando aulas de português, história, geografia e aritmética, para o exame de admissão ao curso ginasial.
Quanto à data de seu nascimento, sua mãe afirma que nasceu no dia 26 de abril de 1947, mas na certidão de nascimento tem a data de 23 de julho de 1947. Para maximizar a vantagem, celebra aniversário nas duas datas. Seu pai, que sempre foi motorista de táxi, de ônibus e de caminhão, o matriculou, aos 4 anos de idade, no Jardim da Infância do Parque das Crianças, em Fortaleza, ao fim do qual concluiu o ABC, tendo tirado o diploma de "doutor do Beabá". Desta época, recorda um episódio que, a meu ver, o caracteriza como uma criança dotada de capacidade superior às demais de sua idade. Um dia, depois de uns seis meses que freqüentava o Jardim da Infância, o pai que sempre ia buscá-lo na saída da escola, no táxi que dirigia, não apareceu. Mário foi pra casa só. Enquanto muitas crianças se perdem pela cidade com 6 ou até oito anos, e ficam chorando e gritando no meio da rua, ele, demonstrando já um talento pra enfrentar determinadas situações difíceis, com 4 anos apenas, tomou um ônibus, sem ajuda de nenhum adulto, e conseguiu chegar em casa.
Certa feita contou-me sua mãe, a senhora Nenzinha, que Mário, com 10 anos de idade, quando a família morava em São Paulo, cuidava de seu irmão Paulo Roberto, enquanto ela saía para vender costura. Balançava a rede para fazer dormir o irmãzinho menor, e logo corria para jogar bola na rua, em frente à casa onde morava. Quando o Paulinho acordava, ele tornava a balançar a rede e depois voltava a jogar. Até Paulo Roberto completar 3 anos de idade era Mário quem se encarregava de cuidar da criança.
Da infância, tem a grata recordação de um bom e fiel cachorro, de nome Tupy, cujo caráter corajoso e apaixonado se parecia com o do seu dono. Era um cachorro valente, pelado, "pé-duro". Mário gostava de vê-lo brigar com 5 cachorros e botá-los pra correr. Era uma espécie de sultão poderoso: suas cadelas eram exclusivas, não as dividia com nenhum outro cachorro. Mas tinha medo de fogos. Quando Mário assoviava ele vinha correndo tão velozmente que um dia, ao passar por baixo de suas pernas, Mário se desequilibrou, caiu e quebrou um braço. Tupy gostava tanto de cadelas que teve um fim trágico: uma vez ficou engatado no meio da rua e um ônibus passou por cima de seu corpo. Por causa de sua admiração pelos caninos, Mário diz que se reencarnasse queria ser um cachorro. "Dentre amigos encontrei cachorros, dentre cachorros encontrei amigos". Mas se tivesse que recomeçar a vida, talvez não fizesse tudo o que fez. Tem medo de repetir as doidices que cometeu. Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo. Contudo, não se arrepende, acha que fez tudo como uma aprovação para viver uma vida mais harmoniosa e salutar numa próxima encarnação.
Seus pais se transferiram para São Paulo quando Mário tinha 9 anos de idade. Ali residiu por 7 anos, no bairro de Santo Amaro. Com 13 anos arranjou emprego numa alfaiataria como cobrador. Levava as cartas de cobrança aos clientes inadimplentes. Saía para visitá-los e voltava com os recibos das cartas assinados, não pelos clientes, mas por ele mesmo. Falsificava as assinaturas, e com o dinheiro do ônibus que o alfaiate lhe dava, ía tomar banho numa lagoa que existia em outro bairro.
Ao retornar a Fortaleza, com 16 anos de idade, ficou hospedado, durante um mês, na casa do seu primo, o professor Luiz Cruz Lima. Seus pais íam visitá-lo alí nos fins de semana. Mas não permaneceu por mais tempo, pois num domingo, quando se preparava para sair ao cinema, para assistir a um filme de Elvis Presley, a mulher do primo mandou-o lavar a casa. Ele abandonou imediatamente a casa do seu anfitrião. Ao tomar conhecimento de sua partida, Luiz Cruz o procurou e falou-lhe --- Mário, sua atitude foi pueril. E ele: meu irmão, eu não gosto de ser subjugado por ninguém e nem de ser subordinado a ninguém. Contudo, Luiz Cruz, ao perceber a inteligência precoce do jovem primo, permitiu que Mário estudasse 6 anos de graça no curso Humberto de Campos, do qual Luiz Cruz era diretor. Mas parecia-lhe, em alguns momentos, que o primo estava arrependido de haver-lhe concedido tal privilégio, o que Mário notava, com sua intuição inata. Portanto, não tinha prazer continuar estudando alí. Mas um episódio curioso veio reaproximar os dois primos. No ano de 1964, no início da ditadura militar, o professor Luiz Cruz Lima refugiou-se, durante um mês na casa de Mário Gomes, no Bom Sucesso, subúrbio de Fortaleza. Naquela época Mário havia começado a dar aulas no Colégio Albaniza Sarazate. Luiz, ao observar uma das aulas ministradas por Mário, decidiu contratá-lo como professor do curso Humberto de Campos. Assim Mário, aos 17 anos de idade, passou a estudar e ensinar no mesmo colégio. Mas apesar do seu talento natural e de sua didática intuitiva, a experiência do magistério durou pouco tempo. Durou o suficiente para deixar, na memória de alguns jovens, a marca de suas idéias excêntricas, sua explicação de certos temas complexos para aqueles pupilos a quem ensinava a filosofar na mais tenra idade. Propunha questões e suscitava debates em torno de alguns porquês, cuja inclusão nos programas do ensino contemporâneo parece inconcebível. Por exemplo, fazia-lhes refletir sobre por que Deus criou o mundo, por que o ser humano morre e se após a morte existe outra vida. Enchia a cabeça daqueles meninos destas intermináveis interrogações, pelas quais eles se tomavam de crescente interesse. Após o episódio do grave desentendimento com seu pai, fato que transtornou-lhe a vida, sua missão de instrutor do Colégio Humberto de Campos foi definitivamente interrompida e desviada para a desbragada prática da vagabundagem, ditada pelo anseio de liberdade e pela tendência à boemia que sempre o caracterizaram. Quando começou a beber, vadiar e viajar sem um destino certo, abandonou todos os hábitos e compromissos que exigissem responsabilidade, rigidez de horário ou cumprimento de determinada rotina. Interessava-lhe a sua Praça do Ferreira, a qual esposou como uma noiva ideal, e a companhia dos amigos de copo, como o Temóteo, o Adson, o Edmar e outros malandros, andarilhos, amigos do álcool, fiéis à dose de aguardente como os galos ao milho.
Desde a infância, Mário sempre foi admirador dos playboys, dos bandidos. Queria ser um daqueles caras sobre os quais os jornais escreviam -- roubou um carro, etc... Sonhava possuir os sapatos brancos e as roupas berrantes que as lojas exibiam em suas vitrines. Seu ideal sempre foi o de curtir a vida livre e sem compromissos ou preocupações. Após conhecer alguns dos amigos de farra, como o Temóteo e o Adson, começou a comparecer às aulas meio embriagado, o que contribuía para exacerbar as idéias exóticas que divulgava sobre o mundo e a vida. Antes da criação, dizia, Deus olhava a própria cara como um espelho. Depois, aborreceu-se e decidiu fazer as coisas. Basta de solidão, pensou Ele. Mesmo Deus se sentiu só e preferiu a companhia dos pertubadores seres humanos a ter que viver no mais absoluto silêncio. E criou o homem parecido com Ele, mas não igual, para que ele não seja capaz de tomar-lhe o poder numa investida de rebelião. Portanto, se Deus é esperto, nós também devemos ser. A meninada ria à beça das idéias do professor. Com relação à expulsão de Adão do paraíso, negava-se a crer que tal fato se dera por causa de uma simples maçã. Se assim fosse, porque se permite ainda hoje a venda de tal fruta nas mercearias e supermercados? Então, por sua maldição, a maçã deveria ser proibida como uma droga nociva, mas não é. E toda vez que a gente comesse uma, já ia direto pro inferno. Desse modo, as crianças das escolas Albaniza Sarazate e Humberto de Campos achavam mais interessantes as interpretações dos fatos bíblicos feitas pelo Mário do que as do vigário que comparecia semanalmente para as aulas de catecismo.
Depois das aulas, o professor Mário Gomes comprava 2 litros de cachaça, 4 carteiras de cigarros e ía para a Praia do Futuro, levando livros de Vinícius, Castro Alves, Olavo Bilac e Fernando Pessoa, seus poetas prediletos. Ficava à noite bêbado, lendo em voz alta e falando com o mar, "desafiando os deuses e demônios, no auge da embriaguês".
Lembro-me de que numa entrevista concedida a um jornal de Fortaleza, por ocasião da divulgação do lançamento de um de seus livros, ao ser indagado sobre o que significou a experiência de professor de filosofia para crianças, respondeu que não tentava ensinar nada às crianças, pois elas já sabiam ser espontâneas, alegres e intuitivas, como os adultos deveriam ser. Perguntado sobre seu trabalho com a poesia, afirmou que consiste em recolher na natureza a poesia de cada momento. O trabalho do poeta é o contrário do que fazem algumas pessoas, que trabalham pensando só nos lucros. "Se eu trabalhasse assim me sentiria um otário". Indagado ainda sobre como se auto-define, redargüiu: "como me definem as pessoas que me conhecem: pilantra e vagabundo, pois fico todas as tardes, de 13 às 18 horas, na Praça do Ferreira, olhando os carros e as pessoas passarem ou recebendo os amigos. Não é por isso que eu bebo?" Pergunta a si mesmo. Segundo constatou o amigo Carlos Paiva, num artigo de jornal, Mário, ao conversar com seus colegas de ócio, em plena pasmaceira das tardes cálidas, fica sempre "atento ao ventinho que levanta saiolas."
Ainda adolescente, ao retornar de São Paulo, em 1983, Mário conheceu um grupo de playboys, que o povo chamava de «rabos de burro», porque tinham o cabelão grande que escorria pelas costas. Fez muitas farras com o grupo, liderado pelo famoso Ivan Paiva, um marginal da classe alta. Durante as farras, costumavam roubar carros e passar a noite circulando com o automóvel, bebendo uísque, fumando e conversando. Os jovens que compunham o bando, entre os quais o Djafre, o Elmo e o Émerson, para citar apenas os principais, o convenceram a praticar algumas travessuras desse tipo. Com eles, de vez em quando, roubava um carro, passava num posto de gasolina, enchia o tanque e se mandava sem pagar. Depois, os vagabundos passavam numa mercearia, pegavam pacotes de cigarro, garrafas de uísque e outras coisas. O comerciante, feliz, botava tudo em caixas. Então, Djafre dizia: olhe, vou pegar o dinheiro no carro. E aí... pé no acelerador... Ao clarear o dia, abandonavam o carro em alguma rua. Na noite seguinte, repetiam a mesma façanha...
Mário se lembra do dia em que, com os companheiros «rabos de burro », tirou uma rural da garagem de uma casa, no centro de Fortaleza. Luis César batia o record pela rapidez com que fazia ligação direta. Mas naquela noite, depois de empurrarem a rural até o meio da rua, quando Luis estava fazendo a ligação, Elmo avisou: vem vindo a PM! Mário, embora estreante na arte de roubar rurais, não hesitou e falou: seu guarda, dá uma mãozinha aqui. Os PMs empurraram a rural e a turma de malandros se mandou, dando risadas. Quando amanheceu o dia, colocaram a rural dentro da garagem da casa de onde a haviam tirado.
O que mais lhe marcou a vida, segundo declara, foi descobrir-se poeta com 18 anos, depois de libertar-se do jugo implacável de seu pai, que partiu de casa quando Mário tinha 20 anos. Por inflexível determinação, o seu genitor não permitia que os filhos adolescentes chegassem em casa depois das 10 horas da noite e por esse motivo chegou a expulsar de casa o próprio filho. Esse fato contribuiu decisivamente para desencadear o processo de desregramento e boemia em sua vida. Seu pai era selvagem, castigava os filhos pelos mais insignificantes motivos. Ele e os irmãos apanharam, muitas vezes, apenas por causa de um peido. Tinha carinho apenas pela menina, a única irmã de Mário, e a mais nova. Seria esta a razão porque, na infância, o poeta brigava tanto com os outros meninos, na escola primária? Sentia, desde criança, uma espécie de revolta contra a tirania do pai, o que provavelmente se refletia em seu relacionamento com os outros meninos. O certo é que, às vezes, chegava em casa ensangüentado de tanto brigar. Mas sempre pedia desculpas aos colegas.
Começou a escrever em 1966, aos 18 anos. Seu primeiro poema foi escrito depois de uma briga com um amigo, por causa de uma namorada. Deu-lhe um murro. Foi a maior confusão. O poema diz o seguinte: "noite calma e violenta, o cão atenta... Alguém leva um murro por causa de uma rixa. Em compensação minha mão incha." A partir de então a veia poética o persegue para sempre. O murro foi um pretexto, pois o dom já existia. Como ele se auto-define, tornou-se um amante das estrelas, um devoto da lua. E embora perplexo com o primitivismo da humanidade, e às vezes se considerando "o mais vil dos cearenses", sonha escrever um poema perfeito como a criação divina.
Logo depois do episódio do murro, com vontade de ganhar algum dinheiro para publicar seu primeiro livro, intitulado Lamentos do Ego, Mário arranjou emprego numa loja de confecções de nome Escol. No terceiro dia de trabalho decidiu comprar algumas roupas e revendê-las, por um preço mais caro. Apesar de andar sempre de táxi, chegava sempre atrasado. No dia em que chegou com um copo de Ron Montila na mão, foi despedido pelo gerente da loja. Nesta época, ano de 1968, conheceu o poeta Laércio de Menezes e, por seu intermédio, o Clube dos Poetas Cearenses. Em 1970 foi publicado na Antologia de Poetas do Ceará, organizada por aquela agremiação de jovens sonhadores que se reuniam aos sábados, na casa de Juvenal Galeno, no centro de Fortaleza. A partir de então foram-lhe mais pródigos os prêmios da inspiração e com eles vieram as viagens e as extravagâncias. Ao assumir definitivamente o seu compromisso com a vida desregrada, passou muitas noites sem dormir ou dormindo pelas ruas e alimentando-se precariamente, até ficar desnorteado, falando em voz alta na ruas e nos ônibus, escrevendo e recitando poemas nas praças, e andando, durante esse período, maltrapilho e sujo. Ganhava de presente roupas novas, ternos e sapatos, do amigo poeta Luiz Ribeiro, advogado e exímio sonetista, que conhecera no Clube dos Poetas e de quem se tornara colega de farras, e vendia tudo para gastar com bebida alcoólica, cigarros, mulheres etc. No Clube dos Poetas conheceu diversos jovens com talento para as letras e com eles celebrou amizade e manteve intercâmbio de idéias. O Clube, em suas reuniões hebdomadárias, era freqüentado por alguns adolescentes que, atualmente, figuram na lista dos principais autores da literatura cearense. Alí, sob a égide da família do poeta Juvenal Galeno, contando com o apoio logístico da escritora Cândida Galeno, também conhecida como Nenzinha Galeno, que emprestava a casa para as reuniões, os jovens escritores líamos poemas e discutíamos literatura e outros assuntos do domínio do intelecto. Dentre os moços idealistas e visionários que freqüentavam aquele domicílio da poesia, recordo de alguns nomes, como o João Batista, por exemplo, que misturava poesia com física e anunciava uma teoria revolucionária que revogaria todo o sistema da relatividade de Einstein. O Fernando Neri, poeta, compositor e cantor, de afinadíssima voz, intérprete de grande sensibilidade da música popular brasileira. O Vanderlou Oliveira, sempre acompanhado de duas ou três namoradas ao mesmo tempo, proeza que ninguém sabe como conseguia realizar, inclusive porque não se incomodava em dividi-las com os amigos e nem elas se opunham a tais liberalidades. O Clébio Carneiro, de quem recordo um verso que dizia: "calafetaram todas as portas ou todas as saídas". De fato, era a época em que, no Brasil as portas da liberdade política e de expressão estavam realmente calafetadas. Havia o Gerim Cavalcante, na época estudante de Direito e autor de poemas de alto teor metafórico, tal como aquele de preocupações humanistas, em que dizia "o ventre não há de parir robôs". Havia o Rembrandt Esmeraldo, poeta de forte preocupação social, mas com um conteúdo lírico marcante, que falava do adeus das amadas mortas e indagava "o que restou do teu silêncio?" Rembrandt ficou conhecido pela excentricidade com que declamava um poema que começava com os versos "os corpos das amadas mortas tombarão de encontro aos vidros" e terminava, de maneira surpreendente, com o poeta atirando-se ao chão, o corpo rígido, mas amparando-se com os braços, para que o rosto não se chocasse contra o solo.
Carneiro Portela era mentor intelectual da agremiação. Dele recordo-me de um poema que costumava recitar, no qual perscrutava a solidão das criaturas na noite agônica do mundo. Havia também o Natalício Barroso, que publicara seu primeiro livro "Os Deuses e o Deus", de profundas indagações metafísicas e com musicalidade nascida das fontes recônditas do eu. E ainda o Jarbas Júnior, que na época escrevia haikais que já revelavam a tendência espiritualista de sua poesia. E o Mário Nogueira, com óculos de fundo de garrafa, o Iton Lopes, boêmio e bonachão, que era na farra uma das companhias prediletas de Mário Gomes, o Francisco Marques, ator e poeta, o Nemésio Filho, raquítico e de barba rala. O Eurico Bivar, poeta e pintor. O inolvidável Valdemar Garcia, ator e pianista, que apesar de não escrever poesia, recitava, com a mais tocante sensibilidade, os maiores poetas da língua portuguesa. Havia diversos outros, como o Walden Luiz e o Ricardo Guilherme, ambos aficionados à dramaturgia, e que se tornaram diretores de teatro, tendo promovido e participado de diversas peças no Teatro José de Alencar e no teatro de bolso da EMCETUR.
Quando cheguei ao Clube dos Poetas, em 1975, convidado por Mário Gomes, encontrei alguns destes amigos e outros foram aparecendo depois. A entidade já havia sido fundada há alguns anos e os seus freqüentadores se renovavam naturalmente. Tinha gente que já não aparecia por lá. O Aírton Monte, por exemplo, que era bastante citado pelos demais, e cuja presença jamais vi nas sessões daquela mini-academia. Dir-se-ia que Airton havia sumido depois que passara em Fortaleza uma caravana de ciganas feiticeiras. Mas a verdade é que se havia formado em medicina e a dedicação que sua profissão exigia o impedia de participar das atividades sociais do grupo, freqüentado, em sua maioria por estudantes com formação cultural ainda incompleta, mas que já traziam o germe do talento que propiciaria a elaboração de suas obras futuras. Diante de todos, Mário Gomes destacava-se pela espontaneidade irreverente, pelo primitivismo de sua expressão tosca, mas de grande sensibilidade humanista. Além disso, Mário sempre foi o protótipo do anti-acadêmico e a bagunça e informalidade que sempre promovia alegravam as sessões e retiravam do grupo qualquer ranço de pretensão acadêmica. Guardo inapagável memória daquele tempo em que sonhávamos publicar antologias que nos trouxessem o mais rápido e consagrador reconhecimento público. Sobre as mentes dos circunstantes pairava a sombra benevolente de Juvenal Galeno e a proteção da figura austera e mansa de Nenzinha Galeno. Estou convicto de que o Clube dos Poetas merece um lugar de destaque na historiografia da literatura do Ceará. Constitui lacuna na obra do historiador, poeta e crítico Sânzio de Azevedo, intitulada "Literatura Cearense", a não inclusão do Clube dos Poetas entre as agremiações literárias que pontilham na história do Ceará. O escritor Airton Monte o recordou, em sua coluna no jornal O Povo, como uma saudosa entidade poética, onde se reuniam os mais promissores jovens poetas de Fortaleza. Naquele recanto de lirismo, os bardos principiantes tinham uma oportunidade de ampliar seus conhecimentos através do intercâmbio que mantinham durante os recitais e saraus realizados na velha Casa de Juvenal Galeno. E Aírton justifica ter freqüentado pouco tempo aquele grêmio pelo fato de ser difícil explicar às namoradas que estava, em pleno sábado, fazendo um sacrifício em prol da literatura.
Foi na Casa de Juvenal Galeno que Mário encontrou guarida muitas noites em que regressava da boemia e ingressava pela porta entreaberta para dormir no assoalho da sala de reuniões, com a conivência imperceptível do Sr. Oscar e de Dona Nenzinha Galeno. Ali se recolhia até as primeiras horas da manhã e partia com os primeiros raios de sol, antes que os donos da casa se levantassem. Este hábito se repetiu por muitas vezes. Naquele tempo não havia tanto assalto e era possível manter as portas das casas sem tranca, fechadas apenas com o trinco. Uma noite, após uma peregrinação boêmia, Mário entrou, deitou-se e pegou no sono, estendido no chão, no palco do auditório. Mas Dona Nenzinha e o Oscar escutaram-lhe o ronco e o acordaram. Pediu desculpas e se retirou. Algumas vezes, depois da meia-noite, quando já não havia ônibus para o Bom Sucesso, dormia sob os portais do Teatro José de Alencar. Numa dessas ocasiões, um ladrão tentou roubá-lo (se é que havia algo que subtrair-lhe). Mário reagiu. Brigaram. Percebeu porém que estava perdendo, pois era o mais fraco e tentou fugir. Mas voltaram a brigar mais quatro vezes por não conseguirem identificar os próprios chinelos no meio da briga. Isto é, Mário pensava que as sandálias do ladrão eram as suas. Por ventura, passou um conhecido e rapidamente retirou da cintura do meliante a enorme faca que este portava, a qual, graças ao anjo guardião do poeta, o larápio, no calor da briga, esquecera de utilizar.
Hoje em dia a Casa de Juvenal Galeno ainda funciona como centro cultural e recebe poetas e intelectuais, entre os quais o pessoal da União Brasileira de Trovadores, que foi durante muitos anos presidida pelo inolvidável Vasques Filho, e da Sociedade Brasileira de Astronomia, sob os auspícios do astrônomo e escritor Rubens de Azevedo, bem como a Ala Feminina de Escritoras, fundada por Cândida Galeno. Graças à simpatia e ao desvelo de Alberto Galeno, irmão de Nenzinha, o local ainda se mantém disponível para estas atividades culturais. Situada na rua General Sampaio, em pleno burburinho comercial, a mansão de Juvenal Galeno é um refúgio ante a confusão e a zoada dos camelôs e do trânsito que circula nas imediações da Praça José de Alencar. O busto de Juvenal Galeno mantém-se impávido na entrada do recinto e ainda se vêem, nas paredes da sala principal, as fotos de alguns bardos, dentre os melhores representantes da literatura cearense. Há também um pátio bucólico, circundado de árvores seculares, onde em algumas ocasiões, especialmente nos dias 25 de dezembro de cada ano, se reuniam simultaneamente os trovadores e os cantadores, em festas memoráveis, uns recitando versos e outros improvisando-os no dedilhar da viola. Os saraus na Casa de Juvenal Galeno já não têm o mesmo encanto dos tempos de Nenzinha Galeno, mas ainda dão guarida aos tesouros da tradição cultural do Ceará e do Nordeste brasileiro. Apenas o Clube dos Poetas extinguiu-se definitivamente, talvez pelo próprio desinteresse ou perda de ideal e da capacidade de sonhar da maioria dos seus ex-sócios.
Só quando seu pai partiu definitivamente de casa é que Mário pode regressar ao lar. Depois de haver passado 3 meses pelo centro da cidade de Fortaleza, pelas boates, curtindo altas pingas, vinho «sangue-de-boi», mulheres, putas, noites em claro, dormindo pelas ruas, sentiu que estava com um distúrbio mental. Então, no dia 20 de janeiro de 1967, seu primo, o professor Luiz Cruz Lima, o mesmo que o hospedara e empregara, encontrou-o, por volta de 8 horas da noite, em frente ao Cine São Luis, na Praça do Ferreira e lhe disse: Mário, teu pai quer falar contigo, quer que tu volte pra casa. Mário não sabia que era uma cilada e que queriam botá-lo no hospício. Entrou contente na rural do Luiz, sem preocupar-se, pois chega-se ao manicômio de Parangaba pela avenida Benfica, pela qual também se tem acesso ao bairro onde Mário reside. Tal como premeditara, Luiz entrou no Hospital São Vicente de Paulo, para trancafiar ali o nosso poeta. O psiquiatra de plantão era o Dr. Clodoaldo Castelo Branco, que inclusive não era médico ainda, era apenas estagiário. Segundo Mário, aquele jovem acadêmico de medicina o usou como cobaia. Foi enganado por ele e por um padre, que prestava serviços "espirituais" aos doidos. Ambos o conduziram pelos corredores do hospital. O Dr. Castelo Branco, com a mão no ombro de Mário, disse-lhe: "você vai jantar comigo hoje". Depois, entraram num quarto onde já havia alguns loucos hospedados. Não tinha saída, Mário teve que se entregar aos três enfermeiros que o esperavam. Eram grandalhões como leões de chácara. Três trogloditas halterofilistas, que o deitaram numa cama, amarraram-lhe os pés e as mãos, colocaram um lenço em sua boca e deram-lhe o primeiro choque na cabeça. Quando retornou a si, colocaram-no em uma cela, como numa prisão, com grades de ferro. Um cubículo. Com outro débil mental. Não tinha banheiro. Tinha que defecar numa lata. Levou 12 choques. Depois de 17 dias preso, o colocaram numa cela vizinha, em companhia de um doido forte que, após 3 dias de tentativa, conseguiu romper a grade do janelão. Quando Mário conseguiu passar o corpo para o lado de fora, o louco gritou: fugiu um doido, fugiu um doido! Pegaram-no e colocaram-no noutra cela. Passou um mês trancafiado, com outro paciente, outro doido, vamos dizer assim. Aí, de 3 em 3 dias, aplicavam-lhe um choque na cabeça. Uma tortura. Imagino o quanto sofreu o nosso poeta, na flor dos 20 anos, cheio de ingenuidade e sensibilidade, nas mãos de um bando de insensatos.
Este drama vivido por Mário Gomes faz lembrar o martírio sofrido pelo poeta Antonin Artaud, que também foi alvo dos perversos métodos da terapia psiquiátrica. É natural que um adolescente indefeso, puro como um Cristo, fustigado por indivíduos de mentalidade tacanha, se sentisse apavorado com aquela situação. Mas a agilidade mental dos poetas é um instrumento que sempre os ajuda. Depois de um mês de reclusão, Mário notou que as irmãs de caridade que trabalhavam ali convidavam os "melhorados" para assistir à missa aos domingos. Teve então a idéia de pedir a uma freira: irmanzinha, deixa eu assistir a missa domingo. Ela falou com o médico e Mário foi com dois enfermeiros à igreja. Assistiu à missa e, quando terminou, viu que as velhinhas beatas passavam com panos na cabeça, dizendo: a missa terminou, a missa terminou... Então, no exato momento em que os enfermeiros se distraíram, pegou um véu de uma velhinha, botou na cabeça e também saiu dizendo: a missa terminou... E quando chegou à porta, ao perceber que estava na rua, deu um carreirão, pegou o primeiro ônibus que ia passando e fugiu em direção ao centro da cidade.
Havia passado 3 meses no manicômio. Depois de uns 3 ou 4 dias que estava na rua, encontra com o seu pai, pede desculpas, perdão a ele e este o leva para casa. Mas o conflito teria que ter o seu desfecho: depois que regressou à casa, tentou mais uma vez chegar após as 10 horas da noite e seu pai o ameaçou de novo de expulsão. E como sua mãe tentara defendê-lo, o pai disse: Nenzinha, ou eu ou ele. E sua mãe disse: ele. Então, o pai partiu de casa para sempre.
Em 1970 voltou a passar 3 dias no manicômio. Desta vez foi por espontânea vontade. Mas fugiu de novo. Tinha dúvida se os médicos estavam certos ou errados. Isto é, questionava se estava realmente louco ou não. Sentia uma grande euforia e falava sem parar. Perguntou então ao Dr. Clodoaldo (ainda acadêmico): "rapaz, o que é que eu faço pra passar essa agitação?" E o futuro médico lhe disse: Mário, leve outro choque, que isso passa. Aceitou a proposta do terapeuta mas, arrependido de haver voltado ao hospital psiquiátrico, fugiu depois de 3 dias. Essas reclusões nos hospícios, durante dez anos, foram a maneira que a família encontrou de livrar-se de suas peraltices incômodas ou talvez de tentar, sem consciência, ajudá-lo a adaptar-se às regras da sociedade. Mário foi colocado oito vezes em manicômios em Fortaleza, e 3 vezes em Salvador. Mas, em todas as ocasiões, conseguiu fugir. Não aceitava a idéia de que a psiquiatria pudesse curar a loucura, que lhe parece mais um fenômeno espiritual, enigmático, que uma doença. E o seu caso não era loucura, embora o tivessem tratado como um louco. Por isso, ficou revoltado, não consentia que tratassem um doente mental como um prisioneiro, aplicando-lhe injeções e choques, dando-lhe doses quase letais de psicotrópicos, cujo consumo a própria sociedade proíbe. Contudo, acha que foi bom que sua mãe tenha posto remédios em sua comida durante vários anos, como vem fazendo até hoje, pois isto evitou que tivesse feito maiores danos à própria saúde, passando mais dias embriagado e noites em claro, perdido em absurdas perambulações. Revelou-me que atualmente toma doses de Anatensol, Haldol e Neozine, (este último com efeito tranqüilizante, e os outros dois, excitantes), de modo que a combinação deles resulta na diminuição da capacidade física e mental do indivíduo. Uma espécie de «sossega leão», para inibir as ações perturbadoras de pessoas demasiado inquietas.
De acordo com o diagnóstico do Dr. Clodoaldo Castelo Branco, Mário era um tipo leptossomático, tímido ao extremo até aos vinte anos. Devido à necessidade de ensinar no curso para o exame de admissão, o esforço feito ultrapassou os limites da consciência normal, provocando uma estafa mental que redundou num quadro de psicose. Só não se tornou um alienado mental total porque se descobriu poeta e a poesia é uma grande terapêutica. Mas acredita também que talvez os medicamentos psiquiátricos o tenham ajudado um pouco. No dia em que se submeteu à perícia, para comprovar que teria direito à aposentadoria por invalidez, o médico atestou que Mário sofria das faculdades mentais e o poeta, em vez de esconder o diagnóstico, com vergonha ou pudor, saiu pressuroso, orgulhosamente, a mostrar aos amigos o teor da declaração. E arremata o assunto com a seguinte máxima: "sempre disse aos amigos que eu era doido por uma doida que era doida por mim". A propósito, achou engraçado aquela música do Raul Seixas: "me aposento com saúde pela previdência social". Parece que foi feita para ele, pela coincidência com o seu caso. "Eu tenho saúde, só não tenho vocação para o trabalho", afirma com convicção. Desse modo, diz estar tão acostumado ao seu ritmo ocioso, a não fazer nada, que quando encontra alguma ocupação se sente muito mal. Isto só em relação ao trabalho braçal, burocrático ou alguma obrigação inevitável, pois quando é evitável, não cumpre. Certo dia o poeta Costa Sena, ao vê-lo tranqüilamente curtindo as horas, sentado num banco da Praça do Ferreira, perguntou-lhe se não tinha jamais alguma preocupação. E a resposta: minha única preocupação é tentar não me preocupar com nada.
Em 1972, com saudade da metrópole onde viveu entre a infância e a adolescência, (dois 11 aos 16 anos) fase que marca a vida de qualquer pessoa, Mário resolveu rever a terra de seu xará Mário de Andrade. Já com 25 anos volta a São Paulo, para rever os amigos de adolescência. Depois de um mês encontra o Cláudio Galo, classe média, que ao vê-lo maltrapilho, deu-lhe um terno tropical inglês, um par de sapatos de cromo alemão e certa quantia em dinheiro. Vestido assim, a rigor, e com o que gastar no bolso, saiu empolgado para o centro da cidade. Cerca de 10 horas da noite entra numa boate, na avenida São Luis, perto da Consolação. A boate cheia. Era um sábado. Senta a uma mesa vazia. O garçom chega e diz: às ordens, cavalheiro. Ele pega o cardápio, escolhe o uísque marca JB, o mais caro. Para se ter uma idéia, o uísque custava 120 cruzeiros e a passagem de São Paulo para Fortaleza custava 115. Aí, inspirado ou por outra, pirado, diz ao garçom: colega, eu sou irmão do Jesse Valadão, venho do Rio de Janeiro hoje para escolher algumas mulheres pra fazer uma filmagem. Se tiver alguma mulher desocupada aí, manda pra minha mesa. Uns minutinhos depois havia 8 mulheres ao seu redor. E altos papos, mentiras, altos baratos, aquele negócio todo, e tomando o uísque. Mas não teve sorte, porque chegou uma mulher com uma bandeja de cigarros e ele pegou uma carteira de cigarros "charme" pra cada uma das mulheres. E quebrou a cara, porque o cigarro tinha que pagar na hora. O cigarro não era da boate, era particular. Deu a maior confusão, lá vem a polícia e tava ele em cana. Um polícia lhe deu um murro na cara, ele caiu e fingiu que estava desmaiado. O polícia percebeu, deu um pontapé e disse: "levanta vagabundo". Quando ele se levanta, é arrastado para dentro da Rádio Patrulha, com a escolta de 3 soldados. O sargento disse --- quer dizer que tu é malandro interestadual, né? --- Não doutor, eu tô só me divertindo, sou um cearense que vim pra cá, tô revendo uns amigos... E o sargento: --- eu vou jogar você no Rio Tietê... E Mário: não faça isso comigo. Ficou na delegacia, dentro de uma cela. Por volta de 11 ou 12 horas, notou que o pessoal de guarda tinha sido trocado. Os policiais que o prenderam foram embora e entraram outros. E observou que na cela onde estava tinha uma brecha, talvez feita por serra, e que dava para passar seu corpo. Estava magrinho naquela época, e à uma hora da manhã, teve a feliz idéia de tentar passar uma perna e outra pela brecha. Conseguiu. Depois ousou atravessar a sala, onde estavam os policiais. Ao vê-los, com a maior cara-de-pau, diz-lhes, "boa noite"... Eles o olharam, talvez pensando que era polícia também. E quando o poeta chega na porta, dá um carreirão...
Perambula pela rua. `As 7 horas da manhã o uísque deu dor de barriga, fez mal. E lhe deu vontade de defecar. Não podia defecar na rua, já estava cheio de gente na cidade. Lembrou-se de que na avenida São Luis tinha um amigo seu, que morava no segundo andar de um prédio. Foi lá, apertou a campainha, o amigo não estava, não atendia, e a dor de barriga apertando, e teve de fazer o serviço na escadaria do prédio... e haja merda... Quando termina, é flagrado pelo ascensorista do prédio. Diante do imprevisto, Mário tirou tranqüilamente a gravata, a carteira de cigarro, o fósforo e o lenço, limpou tudo, e botou o conteúdo num pacote feito com o lenço. E permaneceu de cócoras, estarrecido. O ascensorista fez um alarme, acordou a vizinhança, chegou até velha de camisola para olhar aquele negócio. E o Mário de cócoras, com um saquinho de bosta na mão. Depois de uns dez minutos chegam os policiais. O polícia, ignorante, o vê ali naquela posição e diz, "esse é que é o vagabundo? E, pá! dá-lhe um pontapé... Levanta!... Mário levantou-se bruscamente e foi merda pra todo canto, caga todo mundo... Foi preso novamente. Nesse dia apanhou... Dentro da Rádio Patrulha, tentou argumentar, apelando para o bom humor dos policiais: "mas rapaz, você me prendeu porque eu caguei. Você não caga, esse guarda caga... Antes que conjugasse o verbo em todas as pessoas, o guarda fica puto e grita... "cala a boca!" Ele calou. No outro dia, segunda-feira pela manhã, às 9 horas, na sua vez de ser interrogado, o delegado pergunta: e esse rapaz, o que é que fez? E contaram o caso. E ele: mas você prendeu o rapaz porque fez isso? Porque cagou? Ninguém prende ninguém porque caga não, rapaz!E talvez por acreditar que se tratava do efeito de uma dose de leite de magnésia, determinou que não havia fundamento naquela prisão defectiva.
Em 1973, na segunda viagem a São Paulo, ficou pouco tempo naquela metrópole. Foi ao encontro da poetisa Marilita Posoli, já velhinha, mas sempre generosa. Ela o acolheu fraternalmente e lhe deu uma passagem de São Paulo para o Rio. No Rio, depois de uns 3 dias procurando trabalho, arranjou, numa sexta-feira, um emprego numa loja de confecções, na avenida Barata Ribeiro, para começar na segunda-feira. No dia marcado chegou para trabalhar e o gerente o recebeu bem. Começou a trabalhar e percebeu que não vendia nada, pois não entrava ninguém pra comprar e ele via aquele pessoal passando, aqueles cabeludos com o violão debaixo do braço. E pensou: não, que diabo é isso? Eu tô aqui me sentindo um otário. Ao meio-dia saiu pro almoço e não voltou mais. Foi direto à praia de Copacabana. Naquele tempo não havia tanta violência no Rio de Janeiro, e se podia passar as noites caminhando livremente em qualquer lugar da cidade, sem grandes perigos. Assim, o poeta passou um mês andando com hippies, vagabundos, malandros de toda sorte, sem ser molestado pela polícia nem pelos bandidos. Andou sempre sem dinheiro. Todas as viagens que fez foi sem tostão no bolso. No Rio, chegava nos restaurantes e perguntava aos garçons: tem um resto de comida que teja sobrando aí? Nos restaurantes de comida sofisticada os garçons eram autorizados a dar comida que sobra aos mendigos. A aparência do poeta, naquela época não diferia muito da de um mendigo. Era fácil conseguir restos de comida que metia dentro de um saco e fazia o seu banquete no chão de alguma praça ou de uma esquina qualquer.
Mas o detalhe interessante foi que enjoou do Rio e decidiu viajar de novo. Na rodoviária encontrou o Costinha, aquele famoso cômico de televisão. Aí pensou, é uma oportunidade de dar uma ferrada nele, pra conseguir comida e cigarro ou até uma passagem de ônibus. Falou: "Costinha, me arranja uma grana pra eu tomar uma birita." E ele lhe deu 5 notas de um cruzeiro. Mário achou pouco e devolveu. E saiu andando. Depois de uns 10 minutos voltou e foi pedir de novo o dinheiro. "Costinha, eu aceito a grana". O comediante riu e disse: rapaz você tá é doido.
Viajou naquele dia da rodoviária do Rio até Petrópolis, a pé. Passou dois dias andando. Conheceu por lá um poeta, com quem fez amizade e conseguiu uma passagem de Petrópolis a Fortaleza, com trânsito por Petrolina. Durante a viagem foi falando de poesia e contando peripécias pra um monte de gente. E então uma mulher, já coroa, velhota, se engraçou com o poeta, se apaixonou, sei lá... Queria sentar ao seu lado. Ele não gostou da velha, não simpatizou, achou que era macumbeira, pelo tipo de assunto que falava. Quando chegou a Petrolina, desceu do ônibus, revoltado com a velha macumbeira que o perturbara.
Passou 7 dias em Petrolina, sem conseguir carona. Uma noite, um negão chegou pra ele e disse: "você que é o Mário Gomes?" Ele disse, sou. Aí o negão lhe deu um tapa na cara, sem-vê-nem-quê, só perguntou se era o Mário Gomes e lhe deu o tapa. Mário pensava que ele estava armado e correu. Na esquina, chegou um fusquinha com uns 6 soldados da PM e ele disse: "polícia, um cara me deu um tapa alí, me agrediu, eu acho que ele tá armado". Aí a polícia chega e agride o cara, enche o sujeito de porrada. Mário viu que a boca tava quente e correu. Viajou de Petrolina a Salgueiro a pé, passou 6 dias e 6 noites andando. Pedia comida naquelas casinhas de beira de estrada. Lembra que, uma noite sem lua e sem estrelas, andando na escuridão, treva total, mais ou menos uma hora da madrugada, só estrada e o matagal do lado, viu dois olhos a olhá-lo assustadoramente e fazendo: hum...hum... Ele, pensando, que diabo é aquilo? Se andava apressado, os dois olhos o acompanhavam, emitindo um insólito som: «hum...hum...» Se parava, os olhos também paravam, se andava de novo os olhos tornavam a segui-lo. Com medo, apavorado, resolveu enfrentar aquela aparição. E percebeu que era um jumento! O jumento com medo dele e ele com medo do jumento.
Ao chegar a Salgueiro, no amanhecer, foi até a Agência do extinto "Expresso Fortaleza" e contou ao gerente que havia saltado do ônibus porque fora tratado com grosseria por uma pessoa. O gerente constatou que havia sido deixado um passageiro em Petrolina e disse-lhe que esperasse o ônibus que vinha às 8 da noite do Rio para levá-lo de graça a Fortaleza. Às 2 horas da tarde, conseguiu, em um restaurante, um prato de comida. Então, chegou um mendigo e pediu a comida. Mário, com pena, deu o prato recém-obtido. O mendigo, negligentemente, botou o almoço de Mário num saco e saiu dizendo: "vou comer mais tarde quando tiver fome." Mário, furioso, deu um pontapé no mendigo, pegou a comida e jogou fora...
A realização de uma viagem posterior foi decidida de maneira insólita. Em 1975, quando bebia e conversava com o amigo desenhista Vavau, no bar Londrina, em Fortaleza, falavam sobre o Rio de Janeiro e decidiram subitamente ir de carona para a cidade do Pão de Açúcar. Foram às suas casas, cada um pegou 3 camisas e 2 calças e tomaram um ônibus até Messejana, sem um tostão no bolso. Amanheceram na marquise de um colégio. Depois pegaram carona até Pacajús e foram pegando caronas durante 9 dias de viagem até Feira de Santana. Ali, uma hora da manhã, foram dormir na rodoviária. Decidiram batalhar um café. No bar estava o poeta Rodolfo Coelho Cavalcante, que lhe pagou a passagem até Salvador. Dormiram na casa dele. De manhã, Rodolfo arrependido de haver dado guarida a dois vagabundos desconhecidos, os expulsou de sua casa. Mas deu-lhes 500 folhetos de poesia de cordel para que vendessem. Na seqüência Mário teve que desligar-se de Vavau. Passou 20 dias freqüentando a Biblioteca de Barris, distribuindo os folhetos de Rodolfo Coelho Cavalcante. Já estava com estafa mental e física, quando obteve, com Dona Lucinha, proprietária da cantina da biblioteca, uma passagem de volta para Fortaleza e umas roupas do marido dela, sapatos de cromo alemão e camisas de seda. Sete meses depois voltou a Salvador, foi à biblioteca, e Dona Lucinha disse, ao vê-lo, "você aqui de novo?" E ele: "Dona Lucinha, eu vim apenas agradecer aquela bondade que a Senhora fez comigo." Passou mais 45 dias comendo de graça na cantina dela. Ela ficava admirada com o papo do poeta, pasmada com os seus poemas, dos quais ele recitava apenas os que não a fizessem corar. E assim fez com que a cantineira descobrisse sua vocação de mecenas, já que resolveu sustentá-lo outra vez com os lanches de sua cantina e dar-lhe outra passagem de volta a Fortaleza.
Num sábado do mês de junho de 1975, de novo em Salvador, passara o dia todo tomando cana e à noite, já estonteado por uma ressaca braba, tomou quatro copos de leite, no intuito de recuperar-se e ir ao cinema. Mas na entrada do cinema, após haver comprado o ingresso, deu-lhe uma enorme vontade de peidar. Pensou que fosse um peido honesto, fiel, amigo. Que nada. Foi traiçoeiro. Todo cagado, saiu correndo. Para sua felicidade, caiu uma chuva torrencial que lhe permitiu lavar a cueca e tomar um banho completo. Colocou a cueca numa raiz de uma árvore e alí a esqueceu. Retornou a Fortaleza, e sete meses depois voltou à capital baiana. Ao chegar lembrou-se da cueca, foi procurá-la e a encontrou no mesmo lugar. E ainda a usou por mais três meses. Nessa viagem, quem pagou o seu retorno a Fortaleza foi o amigo Miguel Cirilo, impressionado com a situação do Mário em Salvador.
Durante suas viagens, relacionou-se com os mais exóticos tipos humanos, como por exemplo, um louco que conheceu em Salvador, na Praça da Piedade, o qual, semelhante a um faquir permaneceu de 6 horas da tarde às 6 horas da manhã olhando fixamente para a lua cheia, sem mover o rosto, com a cabeça erguida para o céu. Impressionado com o louco, Mário permaneceu também toda a noite fitando a cara pasma do demente. Segundo me confidenciou, toda esta paciência se deve a que, na época, também se achava psiquicamente debilitado. Havia passado 9 dias na indigência do Hospital das Grotas. Ali também levou choques elétricos. Depois dos 9 dias num quarto com janelas de vidro, quebrou a janela com um pau da cama e fugiu. De madrugada, em seu delírio de fugitivo, quanto mais andava para fugir, mais se aproximava do hospital. Até que finalmente pegou um caminhozinho e foi direto ao centro da cidade.
Noutra viagem, foi com o amigo Vicente, andarilho de primeira viagem, inexperiente e tímido, para o qual arranjava comida, cigarros, café, etc. Depois de 9 dias e cerca de 30 caronas, chegaram a um posto de gasolina em Jequié. Vicente, vencendo a timidez, teve coragem de pedir um cigarro a um motorista, e o fumou todo sem oferecer ao companheiro de andanças que tanto o ajudara. Mário reclamou desta falta de atenção do colega, os dois discutiram, e Mário disse: "vamos cada um pra um lado." Depois de meia hora de caminhada, arrepende-se de ter abandonado o amigo inexperiente na arte de "estradear" e regressa ao local. Ao chegar já não o encontra. Nunca mais reviu aquele amigo.
Nessa mesma viagem teve uma experiência triste com um mendigo que conheceu nas quebradas do sertão, em plena peregrinação a pé pela caatinga nordestina. Era um velhinho que peregrinava por aqueles confins e com quem conversou durante algumas horas de caminhada. Numa encruzilhada, acharam um despacho de umbanda, com um estrogonofe, vatapá, duas garrafas de cachaça e 8 charutos. O mendigo comeu o estrogonofe e o vatapá e Mário bebeu a cachaça e fumou o charuto. 10 minutos depois, o mendigo estava suando frio, babando, vomitando, revirando os olhos. A comida envenenada matou o velhinho. Mário, por medo de ser envolvido no falecimento do velho, achou por bem abandonar o cadáver e seguir viagem. O poeta confessou-me que não gosta de recordar esta história. Contou-a apenas a 3 pessoas. Tentou esquecê-la por ser horripilante.
Quando chegou a Salvador, foi direto a um bar perto do Pelourinho tomar alguns tragos. De repente um marginal deu-lhe, pelas costas, uma paulada no ombro e correu. Mário correu atrás do sujeito, xingando-o. O cara subiu num batente e pegou um paralelepípedo. Mário disse: tu é tão covarde que não tem coragem de jogar essa pedra na minha cabeça. E reclinou a cabeça sobre o batente. Imediatamente o sujeito joga a pedra. Mário, num reflexo imediato, retira a cabeça. Mas a pedra bate-lhe em cheio na mão, estraçalhando-a. Apavorado, chorando, esperneando, esticando os dedos, conseguiu consertar a mão. Mas ela ficou inchada, como a mão de um monstro, e doendo terrivelmente. Passou 2 meses nessas condições. Ele mesmo fazia os curativos, numa farmácia. E ficou totalmente curado, sem ir ao médico. Não procurou uma emergência ortopédica, por medo de que lhe cortassem a mão, tal era o estado em que se encontrava. Tempos depois, escreveu um poema sobre a importância de não ter ficado "maneta": "a minha mão direita é meu divertimento, é meu cinema. Não posso destruí-la, senão ficarei sem vida".
Continuou viajando periodicamente para a Bahia, atraído talvez pelos orixás da poesia ou pelo encanto das baianas. Foi 10 vezes a Salvador. Sempre sem dinheiro. Passava dois ou 3 meses vagando na mais dissoluta boemia e voltava magro, com altas pirações, tomando estimulantes como «Catovite» e «Reativan» para continuar o ritmo de suas aventuras.
No ano de 1977, na terceira viagem a Salvador, depois de um mês freqüentando a Biblioteca Municipal, apaixonado pelas lindas bibliotecárias, com as quais, embriagado e inspirado, conversava o tempo todo, lendo-lhes poemas e contando interessantes anedotas, a diretora achou que estava atrapalhando o serviço de suas funcionárias, e numa discussão com Mário, telefonou para a polícia, dizendo que tinha um louco querendo apedrejar os vidros da biblioteca. Chega a polícia e o leva pro hospício. O médico conversa com ele uns dez minutos e o manda embora. Em seguida Mário volta à biblioteca e começa tudo de novo. Durou um mês essa briga com a diretora, ela o mandando para o hospício e para a prisão e ele voltando sempre para chatear. E ela, naturalmente, já estava ficando mais neurótica do que ele. Mas ao poeta importava a generosidade e a atenção que as funcionárias lhe davam, e pelo prazer da companhia daquelas musas, enfrentava os maiores perigos.
Certo dia surgiu na Bahia um marginal que ficou conhecido como «o homem do canivete», um débil mental que furava as nádegas das mulheres e se escondia. Segundo se dizia, gostava de furar mais as das estudantes e das funcionárias públicas. A população de Salvador achava-se apavorada, sobretudo as mulheres. Todo homem que flertava com uma mulher suscitava suspeitas. Podia ser o homem do canivete. E a polícia, como acontece em tais situações, prendia o indivíduo como suspeito. Mário foi a pior vítima, seu caso foi horrível. Ele estava, por volta de 9 horas da manhã, no Colégio Central do Estado da Bahia, tentando filar uma merenda que o governo dá para os alunos, quando uma estudante, por brincadeira ou por sacanagem, disse: "ó o homem do canivete!" E os outros alunos foram se aproximando e ela dizia é aquele ali, e começaram a dar-lhe murros, pontapés, por fim aglomeraram-se 400 alunos com a intenção de linchá-lo. Foi a maior surra que levou na vida. Os professores da escola apartaram a briga e o levaram para a sala da diretora, trancaram a porta e telefonaram para a polícia. Quando a polícia o levou algema na Rádio Patrulha, o carro policial foi apedrejado. Passou cerca de 5 horas em investigações, todos os jornais o entrevistaram, as televisões o filmaram e, ao final fizeram as devidas acareações. As 22 vítimas do homem do canivete o salvaram, porque quando o viram, confirmaram que não tinha sido ele o autor das perfurações em suas nádegas. Às 11 horas da noite Mário foi solto e foi dormir na marquise da biblioteca, onde sempre dormia. Ao acordar às 7 horas da manhã, saiu andando pela rua e viu, em todas as bancas de jornal, a sua foto publicada, com as manchetes dizendo, "homem espancado por parecer com o tarado". "Estudantes lincham cearense." Ficou apavorado e teve vontade de nunca mais voltar a Salvador. Partiu para Fortaleza, com uma passagem de trem presenteada por uns amigos, que fizeram uma "vaquinha" para "repatriá-lo".
Numa das viagens para o Rio de Janeiro, foi até à cidade de Muriaé, e de lá foi expulso pela polícia. A burguesia achou de mandar prendê-lo, porque participara de uma serenata estridente, na companhia de uns bêbados que perturbavam o sono de metade da cidade. O delegado o colocou na estrada. Pegou uma carona até Governador Valadares, onde passou 16 dias e foi preso 3 vezes. Na última das prisões perdeu todos os documentos. Depois de liberado, conseguiu, por intermédio de uma amizade com um operário, cujo nome não recorda, uma passagem para Belo Horizonte. A caminho da capital mineira, numa parada do ônibus, enquanto folheava o jornal O Estado de Minas, que havia disponível na lanchonete, leu o artigo de um jornalista mineiro, que havia passado 10 dias em Fortaleza e declarava-se encantado com a cidade, tendo sido muito bem recebido pelo governo e pelo povo fortalezense. Uma frase no artigo lhe chamara mais a atenção: "tenho uma grande dívida com o povo cearense, que jamais irei saldar". E Mário pensou: pô, esse cara vai me dar a passagem de volta pro Ceará. Ele gosta muito do povo cearense...
Chegou a Belo Horizonte, no mês de julho, às 8 horas da noite, com um frio violento, e ele magrinho, só com a roupa do corpo, sem documento, sem nada. Foi logo procurar o jornalista, que se chamava Hélio Fraga. Disseram no jornal que Hélio Fraga só trabalhava de meio-dia às sete da noite. E ele tinha que passar a noite toda, até as doze do dia seguinte, para poder falar com o homem. Depois de dormir numa calçada, sobre o exemplar de O Estado de Minas, acordou com os primeiros raios de sol, com a polícia pedindo-lhe os documentos. Como ele não os tinha, foi em cana. Ficou 15 dias preso. Não sabiam quem ele era, nem a sua procedência. Havia muita violência em Belo Horizonte. A polícia soubera que o famigerado bandido Lúcio Flávio estava pela cidade e acharam que Mário poderia ser um dos fugitivos da gangue. Durante os difíceis dias que passou na prisão, em desespero de causa, tinha atitudes que complicavam a sua situação. Um dia pediu um cigarro a um policial e este o negou. Mário, num gesto de ousadia e loucura, desafiou-o, dizendo: "então enfie no cú." O policial o tirou da cela e o espancou durante meia hora. Na semana seguinte tornou a apanhar por causa de uma briga com dois marginais que começaram a provocá-lo. O policial pegou uma palmatória e deu-lhes sete pancadas nas mãos, com tanta força que se desse a oitava as mãos estourariam. As de Mário ficaram inchadas, azuladas e doloridas durante muitos dias. Depois do castigo, os três foram tristonhos e cabisbaixos para a cela.
Um hippie, seu companheiro de cárcere, depois de uma semana que estava preso, gravou o nome de sua mãe e o endereço, e quando saiu, escreveu para ela. Dona Nenzinha, mãe de Mário, ao receber a carta, foi à Casa de Juvenal Galeno e falou com a outra Nenzinha, a escritora Cândida Galeno, que trabalhava na Polínter, a qual conseguiu, através de contatos com as autoridades mineiras, fazer com que a polícia de Belo Horizonte liberasse o nosso poeta. Quando o soltaram, não explicaram por que. E foi às 6 horas da tarde, perto da hora que o jornalista saía do trabalho. Mário foi de novo ao jornal, mas chegou tarde mais uma vez e teve que passar a noite toda esperando, até o meio do dia seguinte, para falar com Hélio Fraga. Às 3 horas da madrugada, perambulando, foi preso de novo na Delegacia de Furtos e Roubos. Passou 18 dias, trancado num cubículo, com onze assassinos e ladrões. Foi um desastre, um sofrimento. Mário recorda de um episódio grotesco que assistiu naquela prisão. Chegara preso um rapaz de cerca de 20 anos de idade, a quem o policial, para castigar, pediu que retirasse as vestes e mandou que esticasse as mãos abertas. Quando levantou a palmatória para bater, imediatamente o pênis do rapaz ficou ereto. De tão impressionado, o policial desistiu de castigá-lo.
Quando, depois de 18 dias, o soltaram, e ele foi à casa do hippie com quem tinha feito amizade na prisão, tomou um banho e às 2 horas da tarde encontrou Hélio Fraga e contou-lhe a história. O jornalista perguntou: rapaz, por que não me deixa fazer uma reportagem contra esses policiais que te massacraram? E Mário disse: "não, esses caras vão me pegar depois, e é pior… Deixa pra lá, eu quero só a passagem de volta pra Fortaleza". Ele telefona para uma empresa de transporte, na rodoviária, informa-se sobre o preço e lhe dá dinheiro e algumas roupas velhas, que havia no jornal para doação à campanha da fraternidade. Mário agradeceu, vestiu a roupa, que não tinha bolso e guardou, entre a calça e a barriga, o dinheiro, 10 paus que Hélio Fraga lhe dera. Comprou as passagens. O ônibus saía às 10 horas da noite de Belo Horizonte e ainda houve tempo para comprar uma garrafa de vinho, que bebeu na calçada da rodoviária. Deveria tomar dois ônibus, pois não havia nenhum direto para Fortaleza. Tinha assim, duas passagens, uma de Belo Horizonte a Valadares e outra de Valadares a Fortaleza. Devido à sua fraqueza e à fome que passara, à noite, o vinho que bebeu deu-lhe sono e Mário dormiu num banco. Foi acordado por alguém e percebeu que tinha perdido as passagens. O cara que o acordara disse: "rapaz, eu achei ali, você tem sorte." Quando chegou a Valadares, foi passear pela cidade e perdeu a hora do ônibus que partia daquela cidade às seis e meia, com destino a Fortaleza. Soube depois que o ônibus virou e que morreram 13 pessoas e várias ficaram feridas... Foi um desígnio divino aquela intuição que o fez perder o transporte fatídico...
Em Governador Valadares o poeta viveu outro de seus momentos estapafúrdios. Após duas semanas dormindo nas sarjetas, jardins e praças, foi a um clube dançante para ouvir a cantora Núbia Lafayate. Conseguiu entrar sem pagar. Na cozinha do clube arranjou um copo duplo e foi, de mesa em mesa, pedindo colaboração para o seu deleite alcoólico. Notou que havia dois policiais seguindo-o, mas fez pouco caso da presença daqueles fiscais. No final da festa, saiu andando atrás de duas garotas bonitonas e burguesas. Tentou bater papo, mas elas não deixaram. Ante a recusa de diálogo por parte das moças, Mário, zangado, apela: "olha, eu gosto muito é de boceta". E aí, imediatamente os policiais que o seguiam o algemaram e o levaram num fusquinha para a delegacia, onde permaneceu preso por três dias.
Já de volta a Fortaleza, alguns meses depois, passou a freqüentar os bares da rua Clarindo de Queiroz, e de vez em quando ia tomar uns tragos com o seu amigo Adson Alcântara, pelas imediações do mercado São Sebastião. O Adson na época era play-boy e bandido. Hoje é um gigante manso e pacato, embora ainda possa tornar-se feroz com os inimigos. Uma madrugada, num bar localizado naquela área, seu vigoroso amigo começou a discutir com o dono do bar, por algum motivo que Mário não recorda bem, e irritou-se ao ponto de começar quebrar o bar, jogando garrafas nas prateleiras. Depois, revoltou-se contra o próprio Mário e tentou agredi-lo. Mário foge pelas brechas da porta quase fechada. Ao tentar correr, três guardas noturnos o agarraram, dando-lhe uma surra de cassetetes, com porradas em todo o corpo. Conseguiu se desvencilhar dos guardas e da surra, correndo novamente pela rua, quando um dos vigias saca a arma e dispara cinco tiros. A última das balas atravessou-lhe o corpo e Mário desmaiou. A bala bateu embaixo da omoplata, perfurando-lhe a carne e saindo do outro lado. Por absoluta sorte, o projétil não atingiu nenhum osso e nem o coração. Apenas a perfuração e a dor intensa. Quando acordou, no dia seguinte, no hospital José Frota, as enfermeiras estavam-lhe fazendo um curativo. Enquanto exerciam seu trabalho terapêutico, uma delas falou para a outra: "é... se fosse um pai de família teria morrido, mas como é um ladrão, safado e sem-vergonha, está vivo". No outro dia, quando souberam que Mário era um professor do Curso de Admissão, pois havia preenchido a ficha médica, indicando sua profissão, a enfermeira, muito envergonhada, veio pedir-lhe desculpas e Mário a perdoou. Daquele episódio tenebroso restou a lembrança, uma cicatriz abaixo da omoplata e um recorte de jornal que Mário guarda até hoje e que tem o seguinte título: "Professor baleado na Praça São Sebastião".
Conheci muitos heróis, afirma, ao referir-se aos amigos. E cita como exemplo o Haroldo Furtado e o Airton Pescador. Lembra de uma boa ação do Haroldo, no dia em que bebera seis garrafas de cana, num bar do bairro Granja Portugal. Naquela ocasião, ao tentar levantar-se, caiu e bateu com o nariz no chão. Imediatamente o amigo Haroldo o colocou num táxi e o deixou em casa, apesar de não ter dinheiro para pagar o táxi. Diz que conhece poucas pessoas como o Haroldo e Airton, que sabem o verdadeiro sentido da amizade e compreendem o intelecto do ser com quem conversam, e praticam ações fiéis. Sobre Airton de Medeiros, o Pescador, disse que o conheceu na Praia do Naútico. Eles queriam beber e não tinham dinheiro. Então, Mário, que ganhara um terno do amigo poeta Luiz Ribeiro, trocou a camisa nova por uma roupa podre, fedendo a peixe, de um pescador, que lhe voltou algum dinheiro com que comprou cachaça e cigarro. Nesse dia o Airton quase vomitou, de tanto que a camisa fedia. Depois, Mário vestiu o paletó e a gravata, sem a camisa e todo mundo ria daquela palhaçada.
Recorda também um fato engraçado sobre o amigo Zé Ribeiro que, depois de passar 3 meses no Rio de Janeiro, voltou tão empolgado com a vida sulista, que só andava de paletó, gravata, cachecol, boné e óculos escuros, fumando cachimbo e puxando uma cadelinha. No calor das três horas da tarde, a cadelinha já cansada, com fome e sem poder andar, ele dizia pra ela -- se manque! se manque! Hoje o Zé Ribeiro vive confinado numa guarita de fabricar chaves e raramente passa em frente ao "escritório" do pessoal da praça.
Os amigos que encontra na Praça do Ferreira são certamente seus melhores leitores. Homenageou aqueles malandros num poema que intitulou A Turma do Escritório, pois os considera personalidades imprescindíveis. A respeito deles, acha que se aplicam as palavras do poeta e professor Juarez Leitão, segundo o qual a sociedade tem o dever de manter vagabundos como o Mário, pois lhe deve a beleza do lirismo e da poesia. Segundo Mário, o malandro é quem mais se aproxima do intelectual, pois este não suporta conviver com otário. Na noite de lançamento de um dos livros de Mário, Juarez Leitão, encarregado de saudá-lo, chamou-o de poeta das sarjetas, das noites boêmias, de vagabundo genial, que merece ser sustentado pela sociedade, pois ela precisa do seu lirismo. De fato, Mário confirma que, se hoje lhe oferecessem um emprego, responderia: obrigado. Não tenho vocação para trabalho. Em realidade, certa aversão ao trabalho, palavra que, no idioma latino era o nome dado a um instrumento de tortura, não é privilégio de ninguém. Rimbaud confessava invejar a ociosidade dos sapos e dizia: jamais trabalharei! E não são apenas os poetas que justificam a necessidade do ócio: a própria teoria do capitalismo explica que algum nível de desemprego é benéfico para a sociedade, já que evita o crescimento da inflação. Desse modo, nada melhor que um artista marginal para ajudar o progresso econômico, a saúde social e a atuação da "mão invisível" do mercado na civilização contemporânea.
Foi engraçado o encontro de Mário Gomes com Juarez Leitão, este recém chegado a Fortaleza, procedente do sertão dos Inhamuns. Antes de partir de sua gleba nativa, Juarez foi alertado pela família para que tivesse cuidado com os "lapadas", isto é, os ladrões da cidade. Um dia, quase noite, encontra na rua Liberato Barroso um sujeito que lhe diz: ó compadre, me arranja uma grana se for possível! O Juarez pensou logo -- virge, é um lapada, e respondeu, "ora, rapaz, não tenho dinheiro nem para pegar o ônibus". O pedinte, imediatamente, enfia a mão no bolso e lhe dá uma grana. Juarez ficou surpreso e impressionado com aquele gesto e somente depois tomou conhecimento de que se tratava de seu futuro confrade nas letras.
Na época de seu encontro com Juarez Leitão, Mário já era boêmio e ao final das noitadas dormia muitas vezes no chão do auditório da casa de Juvenal Galeno, local onde se reunia o já citado Clube dos Poetas Cearenses. Certa ocasião, Mário tomou um táxi e desceu na porta da Casa de Juvenal Galeno, na rua General Sampaio, pedindo ao motorista para esperar um pouquinho, que voltaria já. Então, percorreu toda a extensão da casa, que tem uma saída pelo quintal, do outro lado da quadra. Passou imperceptivelmente pela sala e pela cozinha, e saiu do outro lado, pela porta dos fundos, na rua 24 de Maio, que passa por trás da mansão do velho Prócer da Poesia. Dalí seguiu para a Praça da Estação, rumo a novas peraltices.
Lembro de uma ocasião em que Mário, em plena reunião do Clube dos Poetas, puxou um revólver e apontou para o Carneiro Portela. Todo mundo se apavorou, sobretudo o Portela. Luiz Ribeiro gritou: que é isso, Mário! Tenha calma! Portela se tremia dos pés à cabeça. Eu pensei comigo, o Mário Gomes tá louco, endoidou de vez, e me preparei pra correr ou me meter debaixo da mesa. Mas era apenas um revólver de brinquedo. Depois, rimos daquela travessura do menino que há em todo poeta.
Das farras com o Luiz Ribeiro, recordo uma noite em que saímos os três, como costumávamos fazer depois das sessões do Clube dos Poetas, para um bar próximo a EMCETUR (Empresa Cearense de Turismo), onde tomávamos cerveja com paçoca. Confiávamos em que o Luiz pagaria a conta, pois naquela época já era advogado e costumava financiar os porres do Mário. Bebemos a perder a conta das garrafas. Quando íamos nos despedir, Luiz percebeu que estava sem dinheiro. Nós também não tínhamos nada. Então, o nosso mentor Luiz Ribeiro teve que deixar empenhado o relógio para que o taverneiro não chamasse a polícia.
Luiz Ribeiro era efetivamente o nosso guru. Tinha admirável erudição e era autor de impecáveis sonetos, como aquele romântico, em cujo primeiro quarteto diz: "quando te vejo é quando estou mais cego/pela paixão que nos meus lábios calo/quero dizer-te que te adoro e nego/o meu amor, talvez porque não falo". Admirávamos o estro daquele exímio sonetista que, mais velho e mais culto do que nós, parecia, nos discursos inflamados que fazia, detentor do dom da palavra. Em suas intervenções no Clube dos Poetas, citava de memória Platão, Aristóteles, Kant e recitava Camões, Olavo Bilac, Antero de Quental e outros bardos, misturando poesia com teoria musical e filosofia do Direito. Era também excelente pianista. Tocava, especialmente Chopin e Lizt, com maestria. Pois era sob a orientação douta deste ilustre mentor que Mário freqüentava a boate Madrugada, um prostíbulo meio sofisticado na Praia de Iracema. O Luiz pagava tudo, a bebida, o cigarro, as mulheres, e na volta, tomava um táxi com o Mário, descia em sua casa e dava dinheiro para o amigo de farra seguir no mesmo carro até sua casa, no bairro do Bom Sucesso, há cerca de 15 quilômetros do centro de Fortaleza. Muitas vezes Luiz encontrava Mário, via-o com roupa simples e dizia: poeta, você tem que andar igual a mim, e ia numa loja e comprava um terno completo, sapato novo, relógio, etc. Depois de 3 dias, Mário vendia tudo e gastava com birita.
Outra de suas amizades notáveis é o Timóteo, que considera uma figura excepcional. Quem o vê hoje, cidadão responsável e trabalhador, dedicadíssimo ao saxofone que toca com maestria, surpreende-se de já tê-lo visto tantas vezes na mais degradante condição. Este companheiro predileto do Mário, que conseguia mergulhar ainda mais fundo que o seu colega nos abismos do alcoolismo, passava semanas e até meses na sarjeta, todo sujo, esquálido e maltrapilho, como um mendigo de verdade. Ao tentar conversar, delirava de tal modo que nada ou quase nada se entendia do que falava. Porém, estas fases de profunda decadência eram intercaladas de momentos de abstemia e lucidez, em que se vestia dignamente, aparecia todo limpinho, abominando as atitudes que tomara sob o efeito da bebida. Hoje em dia o músico Temóteo Cavalcante anima as festas do colunista social Lúcio Brasileiro e parece haver-se libertado definitivamente do vício que o subjugava. Mário tem histórias fabulosas do convívio com este amigo, cuja autenticidade Temóteo confirma, com maiores detalhes, sempre que o encontro na Praça do Ferreira, local da reunião dos colegas de ócio do poeta. Um destes casos é o seguinte: Temóteo havia tocado no carnaval, estava "estribado" e pagou vários uísques e ainda tinha sobrado bastante dinheiro. De repente, chegam uns caras e falam: assalto! Em vez de entregar a "nota" toda que ainda tinha, Temóteo botou a mão no bolso e entregou só uma moedinha de 20 centavos. Só tenho esse dinheiro, afirmou. E os ladrões, decepcionados, exclamaram - esses caras são uns fuleragens, e foram embora.
Numa madrugada boêmia, depois de três dias de farra, Temóteo e Mário tinham gasto a última grana numa rodada de cerveja e já não havia nem pra um cigarro. Andavam pela rua São Paulo, quando Temóteo falou pra um sujeito que ia passando: meu amigo, você tem cigarro? E o cara: tenho ... Quando o cara ia dar a carteira de Hollywood, o Temóteo disse, não, eu quero que você abra e tire dois. O cara tirou dois cigarros e o Temóteo pediu que colocasse um na boca de cada um e acendesse. Ele os serviu e acendeu os cigarros. Depois Temóteo despediu-se do cidadão dizendo: "obrigado, té logo" ... O homem ficou para trás, perplexo, sem palavras, olhando-os.
Mesmo em seus momentos de violenta decadência, Temóteo jamais perdeu o otimismo e a esperança. Prova disto é o poema que escreveu em uma das suas fases de bebedeira e degradação: "se alguém falar mal de você,/deixando-te como companheiras as trevas e a solidão,/tenta humildemente em orações a teu Mestre,/exprimir o inexprimível, com o teu talento./E depois a ti mesmo dizer, estou vivo rapaziada". Sobre ele Mário narra, no poema "Exemplo de Socialismo, Humanismo, Coragem e Personalidade", o seguinte episódio: "Eu e o Temóteo (do sax)/estávamos tomando uns pileques num barzinho/desses de beira de praia,/quando conhecemos um biriteiro./Papo vai, papo vem, quando o dito biriteiro diz:/ih, rapaz, rasgou-se minha bermuda. E eu estou sem cueca"./Imediatamente, o meu ilustre amigo. (Temóteo) diz:/vamos ali. Saem os dois. Eu fico./Passou alguns minutos. Eles chegaram, rindo./Pareciam felizes./Notei o seguinte: o biriteiro, com a bermuda do Temóteo/ e este, com a do biriteiro./ Eu digo: ô Temóteo, como é que você troca a sua bermuda/nova, intacta, limpa, por uma suja e rasgada?/Ora, poeta! tu achas que eu ia deixar o cara daquele jeito?/Eu pelo menos tou de cueca"./É ou não é um homem de verdade?/.
Há amigos a quem Mário se refere com apreço especial. Um deles é o poeta Guaracy Rodrigues, que conheceu em 1970, no bairro Jardim América. Naquela época era o Guaracy quem dava todos os dias o dinheiro para que Mário retornasse a casa de ônibus. Meses depois, descobriu que Guaracy lhe dava todo o dinheiro que tinha e ia a pé para sua casa. Quando soube disso, ficou sensibilizado e não aceitou mais a grana do amigo. Num poema que lhe dedica, chama-o de "Guará matreiro e malandro honesto, de duas décadas das mil e umas noites boêmias".
Outro amigo que muito preza é o grande bardo José Alcides Pinto. Os dois se conheceram numa manhã ensolarada de Fortaleza, quando Alcides saía ao encontro de alguma musa e deparou-se com a figura esdrúxula do Mário distribuindo seus folhetos. Alcides descreveu este encontro e o fenótipo do amigo, num artigo em que o chama de poeta descomunal: "tombado para frente, a camisa de cor berrante, domingueira, o cigarro ardendo na boca, protegida por um bigodão selvagem cor de cobre, com aquele ar de louco heróico estampado nas faces, os passos desmedidos, os gestos insólitos, apesar da paz que lhe afeiçoa o semblante". Depois de ler os intuitivos poemas de Mário, Alcides os considerou aparentemente agressivos, mas delicados e puros em sua humanidade. E destacou alguns versos como os seguintes: "Respeitai as formiguinhas, porque a mulher sofre quando ri e quando chora." Louvou-lhe as travessuras anti-poéticas, pois é típico dos loucos e dos inocentes escrever em estado de graça e de insensatez. Apreciou-lhe os poemas chocantes e absurdos, mas com a dimensão de belas lições de sapiência. Destacou também a sua determinação de permanecer fiel à poesia, no poema em que afirma: "ninguém me despoetizará!" Tem razão Alcides, ao enfatizar, num valioso depoimento, que por sua intuição primitiva e originária, considera-o um fenômeno à parte, fora de toda classificação em escolas e movimentos literários.
Meses depois do primeiro encontro, Alcides vê Mário na Praça e o convida para a inauguração dos murais que mandou pintar em sua casa, na Rua Rodrigues Júnior. Era o ano de 1982, durante o qual José Alcides Pinto obteve diversos êxitos e consagrações com a publicação, entre outros livros, dos Sonetos do Amor Romântico e de uma antologia de sua obra poética. Os maiores pintores de Fortaleza estavam presentes e até o prefeito da cidade compareceu ao evento. Nesse dia Mário bebeu mais que o próprio Dionísio, encharcou-se mesmo. E foi o último a sair da festa, seduzido pelo prazer da companhia do grande Alcides, pelas espécies etílicas e pelas anedotas geniais que o anfitrião lhe contava. Mário dobrava-se de gargalhar, estridente, enfeitiçado e ébrio como um fauno delirante. E ao dar vazão às risadas, pegava as cadeiras de balanço e as golpeava no chão. Tanto repetiu aquela atitude compulsiva que rebentou várias cadeiras da mansão do Alcides. O dono da casa, hipnotizado pelas diabruras de seu convidado, ou estonteado pela ingestão do vinho, parecia conivente com aquelas licenças poéticas desvairadas, advertindo, apenas, de vez em quando, que as cadeiras eram frágeis e que terminariam destroçadas. Alcides me contou essas proezas, achando-as por demais divertidas. Afinal, tudo se perdoa, em se tratando de um tipo como Mário Gomes.
Em 1981, numa das muitas viagens a Salvador, Mário foi, na companhia do poeta Mário Garrido, beber cachaça num bar e a garçonete lhes serviu duas doses tão pequenas que Garrido reclamou. A moça se aborreceu e o amigo se retirou. Mas Mário resolveu ficar e em sinal de protesto ficou encarando a garçonete. O bar estava lotado e ele não sabia que o dono era um valentão, perverso. O sujeito, que era alto, aloirado e musculoso, prometeu dar-lhe um «pau» e partiu para cima do Mário. Foram para o meio da rua e haja murro pra todo lado. O baiano, ajudado por mais seis amigos, deu-lhe uma tremenda surra. Deram-lhe muitos pontapés quando Mário caiu no chão. Chutaram-lhe diversas vezes as costelas. Mário confessa que, desesperado de dor, defecou-se todo. Os caras iam matá-lo se não fosse um conhecido que acabou a briga. Mário saiu cambaleando e passou mais de um mês doente em conseqüência dessas agressões.
Recordo de um dia em que o vi passar meteoricamente pela Praça, magro e agitado, recém regressado de Salvador. Observei-o à distância. Falava alto, olhando o «pôster» de uma mulher, pregado à parede de um edifício. Aproximei-me e ele me saudou alegremente, falando-me de sua recente peregrinação. Enquanto caminhávamos, entrou de súbito numa farmácia. O farmacêutico, ao vê-lo, adivinhou-lhe o pensamento e disse: Mário, já vai entrar na química? Naquele dia o vi ingerir metade de um recipiente do remédio "catovite", um excitante que de vez em quando o poeta experimentava, talvez, à guisa de inspirar-se para escrever algum poema. Nesse dia dei-lhe carona até o Bom Sucesso, e no caminho passamos em Parangaba, onde, com a ajuda de uma caneca de água de um pote que havia num bar, Mário deglutiu o restante do frasco do remédio. Depois, deixei-o num bar, cujo proprietário o saudou efusivamente, chamando-o de professor e perguntando-lhe sobre a viagem. Percebi que toda aquela quantidade de drágeas parecia-lhe inócua, pois não observei qualquer alteração adicional em seu comportamento. O poeta, que já estava falastrão e agitado, continuou assim, contando peripécias ao taverneiro, que ria folgadamente sob o sol da tarde suburbana.
Foi numa noite do ano de 1975, depois do lançamento de um livro de Artur Eduardo Benevides, no Clube Naútico Atlético Cearense, que ao deglutir um sanduíche no calçadão da praia de Iracema, percebi a aproximação de um sujeito com a cara de ébrio, jeitão de indigente, mas com expressão de sagacidade no olhar. Pensei comigo, eis um autêntico malandro. Dito e feito: o camarada me pediu dinheiro pra comer. Achei por bem não negar, pois o tipo parecia simpático. Enquanto saboreávamos o ágape, o tipo foi me mostrando um poema rabiscado numa folha de jornal, toda amarelada, já se esfacelando. Logo nos identificamos. Ele me mostrou uma carteirinha do Clube dos Poetas Cearenses, assinada pelo então presidente, Carneiro Portela. Embora duvidando daquela instituição que fornecia carteira de identidade aos poetas, interessei-me em participar de uma de suas sessões. Assim, passei a ir todos os sábados ao Clube dos Poetas, onde encontrava sempre o sujeito de quem fiquei amigo por causa do sanduíche e da poesia. Por considerá-lo tão exótico, buscava-o sempre na Praça do Ferreira, ou ía à sua casa. Ali conheci sua mãe, D. Nenzinha, que sempre me servia um café sem açúcar e me contava alguma história de seu filho aventureiro. Dessa maneira passei a acompanhar os acontecimentos insólitos da vida do poeta e o desenvolvimento de sua poesia, escrita com absoluta espontaneidade, sem vezo acadêmico. Sempre achei engraçado o sentido anedótico, coloquial e hiperbólico dos seus poemas. E nunca hesitei em considerá-lo um bom paradigma em poesia, pois penso que constituem méritos o seu senso de humor e a maneira de tratar, com simplicidade, questões de profundo sentido existencial, além de certo ideal de fraternidade, com que me identifico, e que transparece nos poemas dedicados aos amigos.
Pelo fato de passar as tardes na Praça do Ferreira, quando Mário necessita usar o banheiro, vai ao bar localizado no segundo andar do Clube do Advogado, ao lado do Cine São Luís, na esquina da rua Major Facundo com a rua do Ouvidor. Houve certo período em que evitou usar aquele recinto porque, um dia, quando foi mijar no mictório da OAB, entrou bêbado, gritando: «todo advogado é cagão!...» E foi imediatamente expulso do local. Depois de uns tempos voltou a freqüentar o mesmo banheiro, como ainda hoje o faz.
A poesia, expressão essencial do espírito, é uma necessidade vital. Todas as pessoas, mesmo inconscientemente, necessitam de poesia. Mário Gomes sabe que alguns indivíduos, entre os quais ele mesmo, os mais sensíveis e menos inadaptados ao meio social, são justamente os que melhor compreendem que viver com poesia é viver melhor. Mário é um exemplo desse tipo de sujeito que, se não fosse a busca da essência interior que a poesia proporciona, não teria a mínima possibilidade de comunicar-se de maneira lógica ou mesmo de sobreviver. Com sua excentricidade, seu apreço pelos amigos e seu caráter bonachão, este poeta encanta a todos quantos se identifiquem com sua sensibilidade. Assim, os amigos o admiram, por sua autenticidade, sua poesia intuitiva, orgânica e despojada, escrita com o coração. Com o seu romantismo primitivo, sem rebuscamentos, sua linguagem burlesca, incorporando aspectos sórdidos da realidade mundana, Mário vem criando gradualmente sua obra, simples, exótica e primitiva, como a conduta que sempre adotou. Carlos Paiva costuma dizer que Mário é a paz. "Se os suecos tivessem juízo já lhe teriam dado o Nobel. Ele é um baobá sem raízes, um pássaro". Outro mérito do mais boêmio dos poetas é a sua capacidade de viver poeticamente: dormir até a hora que o sono acaba, ler poesia no quintal de casa ao sol da manhã, à tarde tomar o ônibus até o centro da cidade para encontrar os colegas de perambulação, e vagar até o por do sol, seduzido pela graça juvenil das mulheres que passam entre as ruas Major Facundo e Floriano Peixoto. Nos seus passeios e deambulações, inspira-se para escrever poemas, "com a naturalidade de quem abre uma torneira que jorra". Anota-os em folhas de jornais, guardanapos de bares, papéis de propaganda, seja onde for. O importante é registrar a inspiração que recebe naquele recanto de lirismo onde confabula o seu ideário, na forma de poemetos anedóticos e irreverentes, mas cheios de perplexidade e humanismo. Canta os amores, os companheiros, a vida e a morte, (essa misteriosa megera que os poetas aprendem a amar ou a esquecer à sombra de um trago de aguardente). E por falar neste tema, o poeta, que faz do tempo o que bem entende e não gosta de perder tempo, já escreveu o seu Epitáfio: "já que a natureza me trouxe chorando, deixai ó morte que eu morra rindo de ti."
O humorismo é característica especial de sua poesia. Menciono dois exemplos de seus poemetos anedóticos. O primeiro tem por título Metamorfose: "ontem, ao meio-dia, no almoço, comi um prato de lagarta e passei a tarde defecando borboletas". E outro, surrealista e sem título, diz o seguinte: "Subi num pé de cana pra colher uvas. Chegou o homem das laranjas e disse, solta as goiabas, rapaz!" Vale a pena referir também um texto em que Mário questiona o sentido de toda a lógica, quando indaga, ao ver algumas moscas devorando um monte de fezes, se se trata de mau gosto das moscas ou se é ele quem não as entende.
A autenticidade é uma característica essencial de sua personalidade. Apesar de usar sempre de certa diplomacia no falar, sabe dizer o que quer com sinceridade e na hora certa. Recentemente, ao ser abordado por um policial, enquanto urinava em frente ao Bar Estoril, na Praia de Iracema, argumentou: "meu irmão, eu tenho 50 anos, sou dono de mim, não estou estuprando, nem matando, nem roubando. Não tenho satisfação a dar a ninguém sobre minha vida". O policial lhe deu razão e o chamou de senhor, por causa dos seus cabelos brancos. Ao contar-me esse fato, Mário sorriu e ergueu o copo em comemoração, por fazer 16 anos que não vai preso. Depois me disse que a bebida já não lhe inspira como antes. Já não tem vontade de partir de Fortaleza, cidade que tanto ama. Não se sente bem em outra cidade. Prefere ficar mais tempo em sua casa, na companhia de sua mãe, Dona Nenzinha, que o espera todas as noites, sempre acordada, preocupada com as danações de seu filho. Já não tem o preparo físico de outrora, quando podia beber copiosamente sem ter ressaca no dia seguinte. Podia beber qualquer coisa, como aconteceu na noite em que, por equívoco, tomou uma dose de querosene. Embora tenha ficado cego durante cinco minutos, recuperou depois a visão. Era capaz de beber tanto, que perdia temporariamente a memória, como numa ocasião em que estava "estribado" e pagou três vezes a mesma despesa. Um chapa que estava de lado percebeu e falou: "bicho, tu pagou três vezes a conta, malandro". Atualmente, apesar de ter moderado o ritmo e o volume das infusões etílicas, Mário ainda gosta de "molhar o bico" de vez em quando.
A poesia da vida de Mário consiste na religiosidade com que, às tardes, impreterivelmente, toma o ônibus do Bom Sucesso à Praça do Ferreira e ali permanece até o começo da noite, conversando com os amigos e recolhendo a matéria-prima de sua arte. Fez dos bancos da Praça o seu escritório, seu laboratório de experiências existenciais. Daquele logradouro estratégico observa tranqüilamente os passantes, fumando o seu cigarrinho com ou sem filtro, (um dos seus vícios prediletos e inalienáveis) e vende ou distribui gratuitamente seus livros. Em seu Canto à Praça do Ferreira, declara-se encantado com a sua beleza, "linda como uma bailarina". Diz que a Praça do Ferreira é sua irmãzinha, sua (f)ilha, seu convívio e seu reduto". Há 33 anos a freqüenta. Viu várias gerações passarem por lá. Pessoas de todos os recantos do mundo. Através dela experimenta a universalidade temporal e espacial, sem se deslocar do seu dileto torrão. Para provar que a Praça é dos poetas, Mário conta que, um dia, entre a fonte e a cacimba que tem no centro daquele logradouro, formou-se um arco-íris só pra ele, fato que interpretou como um fenômeno de bom augúrio.
Ali, em seu quintal de emoções, convive com os amigos boêmios e vê o movimento da cidade, o burburinho dos passantes, a vida que pulsa em pleno coração de Fortaleza. Um dos seus melhores amigos e o poeta José Mário Dias, que tem sua cabeleira escorreita e o sorriso sempre acolhedor. Zé Mario Dias, também assíduo freqüentador da Praça, diz num poema que se sente melhor na Praça do ferreira que em sua própria casa. Mário concorda plenamente com essa constatação, pois gosta de permanecer ali, tecendo os labirintos da conversa com aqueles filósofos, íntimos do ócio, como outrora se fazia nas Ágoras gregas, felizes de desfrutar um recanto urbano tão humanamente acolhedor. Ali, em seu refúgio ao ar livre, Mário exercitou sempre sua malandragem honesta, vivendo de pedir algum trocado a conhecidos ou estranhos. Houve tempos em que o poeta estava tão viciado em pedir, que parava o primeiro que aparecesse para solicitar qualquer importância em dinheiro ou mesmo um cigarro inteiro ou pela metade. Certo dia, pediu a um cidadão um cigarro e este não tinha, pediu depois os fósforos e também não tinha. Então Mário notou que o indivíduo tinha um pacotinho no bolso e perguntou-lhe: que você tem aí? Ele respondeu: colírio. Então Mário puxou as pálpebras com o indicador e o polegar e disse: bote uma gotinha aqui.
Outro grande freqüentador da Praça do Ferreira é o poeta e dramaturgo José Maria Mapurunga. Sempre vestido de branco e fumando o seu cigarro, Mapurunga filosofa com os vagabundos da Praça como se dialogasse com Sófocles ou Eurípedes. Daquelas conversações retira a riqueza humana dos personagens de sua peças. Não menos digno de nota é o jornalista Gervásio de Paula, abnegado admirador de Mário Gomes, que depois do expediente no Jornal, desfruta e saborosas horas de contemplação e filosofia naquele recanto aconchegante da cidade de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Gervásio tem sempre à mão algum recorte de notícia importante sobre algum poeta famoso, ou algum tema relevante no mundo da cultura. Cotidianamente acontece na Praça uma espécie de sarau informal, em que os poetas recitam, teorizam ou fazem de improviso algum poema ou crônica. Há muitos adeptos do rito conversatório nos bancos da Praça. Alguns passam rapidamente pelo local para dois dedos de prosa ou o café da esquina, outros permanecem algumas horas e, finalmente, os mais fiéis, ficam o dia todo contando anedotas, lendo jornais, mostrando uns aos outros seus mais recentes poemas, ou simplesmente olhando o movimento dos transeuntes na Praça mais humana do Brasil. Celso, o ator versátil, Arsênio, o poeta gigante, Adriano, o existencialista, Marcos, ex-Hare Krishna, e muitos outros compõem aquele universo de poesia e fraternidade no coração da capital cearense.
A respeito da vida, diz que a considera "altamente preciosa, mas faz pena, porque ao mesmo tempo não vale nada". No entanto, declara em outro poema: "como é gostoso viver! E louva alguns dos seus prazeres prediletos: ouvir música, beber qualquer tipo de bebida alcoólica, cigarro, reunião de verdadeiros amigos, o bate-papo, mulheres, a solidão, o mar, a cidade, o campo, o sertão. Mas se a morte é inevitável, que venha, aceita-a, mas não agora. E pede-lhe que o deixe morrer rindo dela, já que a natureza o trouxe chorando. Sobre temas existenciais, escreveu o poema Segunda Infância, dedicado à sua mãe: "segundo os mais doutos, a vida do homem começa aos quarenta anos. Tenho, portanto, um ano de vida. Nestes quarenta anos de vida embrionária no ventre da existência,/passei por obstáculos que só quem me conhece acredita./ Com o tempo, descobri-me poeta,/deslumbrado com o por do sol, com o encanto das estrelas,/tornei-me um namorado da lua./Hoje, com apenas um ano de nova idade,/continuo apaixonado pela natureza./Estou chorando, quero mamar./Ponham-me no colo, mulheres,/ajudai-me, amores meus".
Sobre sua poesia, o cronista Paulo de Tarso Pardal louva-lhe, no artigo Um Bárbaro Pós-Moderno, a tendência ao surrealismo, a linguagem coloquial e a expressão do cotidiano, citando como exemplo o poema «Antropofagismo», de caráter masoquista e caracterizando a banalização do desejo, mas dotado da marca singular de Mário, o seu lirismo ímpar e o extremo senso de humor e ironia. Este poema o tornou célebre nas mesas de bares da Praia de Iracema à Praça José de Alencar. Por ele conquistou a admiração de muitas musas. Dificilmente um freqüentador do antigo Estoril ou dos botecos do centro de Fortaleza não sabia de cor os primeiros versos que dizem assim: "Eu, sem ser antropófago, já saboreei muita gente por aí. Minha preferência são os violônicos corpos femininos: a mulher". «Antropofagismo» foi sucesso nas paradas poéticas de Fortaleza durante mais de oito anos. Aonde o poeta aparecia, festas literárias, aniversários, reuniões de amigos, mesas de bares, pediam: Mário, declama o «Antropofagismo!». E é por isso que muita gente sabe o poema de cor. Nele o poeta narra o seu sonho de ser devorado num banquete, por mulheres «sexeis» e histéricas, que ao final declaram: como é gostoso esse Mário Gomes!" Em 1981 Mário fez um recital na Casa de Raimundo Cela, declamando 25 de seus poemas, inclusive o «Antropofagismo», que foi o mais aplaudido pelo público que compareceu. Ao final do evento, o poeta foi abraçado e beijado por várias musas, que o felicitaram pelo êxito. Na ocasião, inclusive, alguns poetas menos inspirados encheram-se de inveja pelas cobiçadas manifestações de apreço que recebera. Desde então, Mario Gomes vem realizando freqüentes recitais em diversos bares e ambientes culturais de Fortaleza, tendo-se apresentado, algumas vezes, com inigualável êxito, no Centro Cultural Dragão do Mar, conquistando aplausos de numeroso público.
Exemplifica o seu estilo surrealista o poema «Ação Gigantesca», que tirou o primeiro lugar no Festival de Poesia Cearense, em 1991. Revela a inspiração que sentiu certa hora da madrugada, quando acordou, e aproveitando a solidão, abriu a janela e achou-se gigantesco, muito forte, e imaginou que se fosse um gigante descomunal, poderia pegar a terra com as mãos, e quando abrisse a boca, engolir as estrelas. E inspirado nesta visão do infinito, escreveu: "Beijei a boca da noite e engoli milhões de estrelas. Fiquei iluminado. Bebi toda a água do oceano. Devorei as florestas. A humanidade ajoelhou-se aos meus pés, pensando que era a hora do juízo final. Apertei a Terra com as mãos, derretendo-a. As aves em sua totalidade voaram para o além. Os animais caíram no abismo espacial. Dei uma gargalhada cínica e fui descansar na primeira nuvem que passava, naquele dia em que o sol, apavorado, me olhava assustadoramente. Fui dormir o sono da eternidade e me acordei mil anos depois, por detrás do Universo."
«Uma Violenta Orgia Universal» é outro poema insólito, também baseado na idéia do infinito. Nele o poeta se irrita, briga e pisoteia o cadáver de Satanás e sai abraçado com Deus, rindo e cantando. Na «Balada do Amor Eterno» propõe à musa, com muito humor e irreverência, um ato de luxúria sado-masoquista. E depois de ambos mortos, ela no céu, ele no inferno, dali fugiria e a seqüestraria para começar tudo de novo.
Segundo a poética de Mário Gomes, um poeta precisa de dom, talento, dedicação e sofrimento. Deve ser irônico e às vezes blasfemo. Deve ler todos os poetas possíveis, sem se deixar influenciar. O poeta deve amar a noite, que é luz nas trevas. Já a amou ainda mais outrora. Hoje, prefere o dia, pois a noite é para os sorumbáticos, insones e sentimentais. A poesia é algo que compõe a natureza e o universo. Até mesmo numa formiga há poesia, em sua insegurança como em sua inutilidade. Lembro-me de que, no preenchimento da ficha de inscrição do Clube dos Poetas, era preciso citar alguma referência, e Mário mencionou as formigas como sua principal fonte de referência. Mas entre os poetas de que gosta e que leu, além de Vinícius de Morais, Castro Alves, Olavo Bilac e Fernando Pessoa, cita também Teixeira de Pascoais, Chico Buarque e Raul Seixas. Admira este último pela coragem de ter preferido optar por outro mundo. "Ele vivia sonhando com discos voadores e nada nesse mundo o interessava".
Revelou-me certa ocasião, em conversa que tivemos na Praça de Lagoinha, em Fortaleza, que hoje estão superados os versos "minha única virtude são os meus vícios", pois atualmente bebe apenas socialmente e eliminou o consumo de outros excitantes cerebrais, exceto o cigarro, que constitui ainda o seu único vício grave. E revelou-me que, se acaso um dia morrer por causa do cigarro, «aos amigos pede calma, pois se teve muito cigarro, fumou com todo o prazer da alma». Apesar de ainda beber sempre que tem um motivo relevante, diz que já não lhe importa a embriaguês, pois não vê mais prazer nisto, já não tem o êxtase de outrora. Agora, quando se excede na bebida, sente-se mal-humorado, cheio de rancores, com amnésia, ao ponto de esquecer os próprios poemas, que sempre recitou de memória. Mário é um dos poucos poetas que conheço que sabe praticamente todos os seus poemas de memória. Lembro-me do velho Patativa do Assaré, que também memorizava todos os seus versos e os declama a qualquer momento.
Apesar de reconhecer que o cigarro o prejudica, diz que o prazer de fumar é superior à consciência do mal que o cigarro faz. Fuma mesmo estando doente da garganta. Segundo diz, "fumar é uma imbecilidade, uma idiotice, mas eu gosto. Tanto é que eu adoro meus vícios, eles continuam sendo uma virtude pra mim". No poema «Momento Trágico», expressa seu apego pelo hábito: "caminhar por uma longa estrada deserta, sozinho, doido pra fumar. Enfiar a mão no bolso e encontrar um cigarro todo amassadinho. Que alegria! Não tem fósforo. O isqueiro não funciona, começa a chover e a chuva destrói o cigarro inteirinho". É com esse espírito independente e irreverente que identifica vício e virtude e diz, nos momentos de angústia: "a vida é uma passagem. Vá à puta-que-pariu todo mundo." E filosofa ainda mais, dizendo "a verdade é a existência de tudo o que existe. Se algo não existe, eis a mentira." Este seu pensamento, embora tenha a exatidão das sentenças dos pré-socráticos, tenho certeza de que Mário jamais o leu em nenhum filósofo grego. Nesse mesmo tom, questiona ainda: "Se eu lesse todos os livros, ia salvar o mundo ou ia aguçar mais a minha mente?".
A respeito de suas namoradas, Mário confessou que seus principais amores foram a Regina e a Valdora. Conheceu Regina em 1978, na Praça do Ferreira, quando ela tinha 19 anos. Apaixonou-se subitamente. Ela estava olhando os cartazes do Cine São Luiz. Mário aproximou-se e puxou conversa. Ficaram amigos. Ele começou a freqüentar a sua casa. Ela morava só. Na outra esquina morava a mãe de criação dela. Viveram uma espécie de amor platônico, não por timidez dele, mas por desinteresse dela. Para Regina fez os poemas "A ti", "Por ti", "Poema Para Quem Eu Gosto" e "Os Difíceis Lábios de Regina". Lábios estes que, aliás, depois de seis meses de observação, descobriu serem exclusivos das várias amigas que via Regina convidar freqüentemente para a sua casa e que costumavam ficar por lá a noite toda. Foi a partir destas repetidas visitas de moças à casa da musa que começou a desconfiar de sua feminilidade, já que fisicamente, ela não demonstrava características que justificassem tal desconfiança. A única coisa que lhe parecia estranha era que Regina não deixava que lhe tocasse o corpo, nem sequer as mãos, mesmo recebendo-o amigavelmente. No dia em que resolveu dar a ela 14 presentes, notou-lhe a frieza ao receber aquela expressão de carinho. E no mesmo instante em que os recebera, convidou uma garota que, também a visitava, para dormir aquela noite em sua casa. Então, disse Mário, cheio de ciúme e razão: "teu negócio é mulher, né Regina?" Ela virou uma cobra, xingou-o, disse que não fosse mais lá, que tinha nojo dele e jogou os presentes no chão. Mário os juntou, levou-os consigo pra casa e os deu à sua irmã. Chorou e bebeu naquela noite. Depois de um tempo, viu-a passar sorrindo sarcasticamente com uma amiga, certamente sua amante, que estava grávida. "Ela se sentia e agia como se fosse o pai da criança, diz Mário, ironicamente. No poema «Por ti», inspirado no relacionamento com Regina, diz: "Por ti moça, andaria mil quilômetros,/ colheria rosas para ofertar-te todo momento./ Plantaria centenas de árvores./ Mergulharia no oceano para cumprimentar os peixes./ Levaria a Deus os pecados do mundo/ e traria de lá o amor infinito./ Enfrentaria toda a humanidade pra te defender,/ nestes recantos verdes onde o segredo é o próprio segredo/ que leva a vida em legiões de vidas/ e eu e tu seríamos um só sem perplexidade". Outro que fez pra Regina se chama «Desprezo»: "Menina, tu me mergulhaste no rio da melancolia./ Te dei uma ponta de cigarro/ que possui o néctar dos meus lábios/ que irão se encontrar com os teus,/ num beijo de nicotina./ Todos te têm como louca./ E isso eu sei que não és./ És sim, desprezada pelo teu próprio mundo./ E este mundo de agora eu conheço profundamente./ Mas felizmente nasci homem e venci a loucura/ numa luta titânica e heróica. /És boazinha, educada e sorridente. /E o nome da tua desgraça chama-se produto do regime capitalista./ Rogarei aos poderes divinos por tua volta à realidade./ A única coisa que posso fazer por ti é essa poesia,/ que acaso eu te mostrasse, não entenderias./ Oh menina, eu choro... eu choro..."/
Valdora era uma poetisa que conheceu no Clube dos Poetas e que participou com ele na primeira Antologia dos Poetas Cearenses. Foi-lhe apresentada por Arlindo Araújo e houve atração mútua e imediata. No mesmo dia ela o convidou pra ir a sua casa no seu dolfine. De lá, Mário sem dinheiro, pediu-lhe o do ônibus pra voltar pra casa. Num sábado, ela o convidou para uma festa. Foi ela quem o chamou de cachorro vira-lata e o inspirou a escrever um poema sobre o assunto, conforme já mencionei. Ela tinha 30 anos e Mário 23. Ao cabo de 3 meses de namoro ela lhe pergunta: se você fosse uma moça pobre e namorasse com um rapaz pobre e conhecesse um velho rico, você casaria com ele? E ele, disse: ah, é contigo, Valdora? E por isso não a quis mais. Ela ficou 6 anos com o velho e não conseguiu tomar a grana dele. Depois, quis voltar com Mário mas ele a recusou. O apodo de cachorro vira-lata foi realmente apropriado, segundo ele mesmo declara. O poema "E Ela não Veio", foi feito para Valdora: "E ela não veio/ e o violão com saudade chora a ausência da amada de um poeta./ Tudo é poesia e ela não veio. /No céu as nuvens diluem-se lentamente,/ limpando a amplidão divina/ e depois surge a lua majestosa e branca e fria./ Tudo é poesia e o poeta lamenta e chora assim:/ solidão, chora por mim, que tu és minha triste companheira./ E ele canta e chora com a doce madrugada /e adormece com as janelas abertas para o além,/ o cigarro acordado entre os dedos./ E tudo dorme na alcova:/ a dose de uísque, o telefone e talvez ela, que não veio"./ Outro escrito para a mesma musa: "No rio voluptuoso dos teus beijos me afoguei./ Fui boiando até o mar do teu sexo./ Ressuscitei cansado e desfigurado. /Foi aí que compreendi que a morte em tua vida /é muito mais bela ainda".
Houve também um lance platônico com uma jovem poetisa chamada Ana Maria Dantas, que se propôs a viajar com ele a Salvador e passou em sua companhia 4 dias e 4 noites, na estrada, mais 20 dias em Recife e 28 em Salvador. Ela dizia ser virgem e Mário respeitava sua vontade. Ela o chamava de tio. Tempos depois a viu em Fortaleza na companhia de uns hippies e nunca mais a reencontrou.
Atualmente parece desiludido com o amor. Jurou jamais casar-se nem ter filhos. Acha a mulher uma aberração da natureza: «uns peitões, a bundona e o medalhão entre as pernas". Mas lhe dá valor "pelo aspecto da existência material, animal". Diz que "o mundo é delas, pois saímos de uma delas e às vezes entramos em outras". Portanto, o seu lema é o seguinte: "mulheres, mulheres, vinde a mim, dá-dá!, fazendo um trocadilho em alusão ao ex-ditador africano. Mas acredita no amor como um sentimento positivo em todo ser humano, desde a origem. Tanto é assim que, mesmo aos mais mesquinhos a lei divina determina que tenham momentos de bondade e afeição.
Quanto a continuar viajando, sente menos ímpeto para sair por aí sem rumo e sem paradeiro. Regressou a Salvador recentemente e agüentou ficar 24 horas na cidade. Ficou com medo que aqueles negrões se lembrassem do que já fez lá e lhe dessem uma tremenda sova. Na viagem, comprou, na altura de Salgueiro, no fim da tarde, uma garrafa de cana. Meia noite adormeceu, e ao acordar, viu que lhe haviam roubado a garrafa. Bêbado, começou a culpar a lua pelo extravio do resto do líquido que aprecia. Chegou a crer seriamente que a lua poderia ter-lhe roubado a cachaça, perguntando-lhe se não se envergonhava de furtar um pobre poeta. Depois, passado o estado de embriaguês, arrependido do que havia falado, ficou com muita vergonha da lua e não agüentava fitá-la.
As viagens a Salvador inspiraram-lhe alguns de seus mais interessantes poemas, tal como este, intitulado "Confesso": "confesso que passava em frente ao Palácio do Governo baiano,/ quando avistei uma base de 60 a 70 pombinhos .../ E disse mentalmente:/ "se tiver pombinhas nesse meio, que me acompanhem"./ De repente vários pombos vieram sobrevoar a mim e gritei:/ parem, parem... estava brincando!/ Aí todos perguntaram em voz jogral/ -- moço, deixa a gente levar uma cartinha para a Sra. sua mãe?/ Eu respondi: me respeitem, não quero ajuda de ninguém. /Os pombinhos -- Ih, ele é pirado! /E voaram... voaram... voaram... /e muito acima dos céus, além dos aléns,/ disseram a Jesus: Mestre, tem um cara na Bahia que tá pirado./ E Jesus -- Ah, já sei. É o Mário Gomes, /deixa pra lá, ele é legal, ele é poeta".
Um dia perguntei-lhe se não se entediava com a rotina (naquele tempo a Praça do Ferreira estava sendo reformada e não tinha os confortáveis bancos que hoje tem, e estávamos mais expostos à poluição atmosférica, no meio daquele burburinho, sem ter onde sentar). E ele me respondeu simplesmente: "não é por isso que eu bebo?" Em outra ocasião, comentei que me parecia estar aumentando exageradamente a população de Fortaleza, pois havia muito mais gente andando pela Praça do que há alguns anos. Ele retrucou apenas: "é muita trepada..." Mas hoje em dia a Praça do Ferreira é uma jóia de urbanidade. Embora permaneça com as mesmas dimensões, parece até que teve o seu espaço ampliado. Tem bancos confortáveis, onde se pode conversar a tarde toda sem sentir dor nas «partes sentativas». Tudo isto graças ao projeto arquitetônico do poeta e compositor Fausto Nilo, que sem saber, prestou um bem a todos os artistas, mendigos, malandros ou aposentados, como o Mário, que tão eficientemente sabem aproveitar aquele agradável ambiente de lazer, desfrutando ali momentos de relax e de prazer.
Em l990 escrevi o poema Visita ao Poeta Mário Gomes, que relata algo dos nossos encontros na Praça do Ferreira, cada vez que vou ao Ceará: Em Fortaleza visito Mário Gomes na Praça do Ferreira./ Caminhamos pela rua Major Facundo/ entre desocupados e alcoólatras,/ entre tendas de camelôs e o lodaçal de folhas secas, /papéis, lixo de toda espécie /ao largo da Casa de Raimundo Cela/ e pelos becos da Liberato Barroso./ Mário, bigodão de cobre, barrigona, sorriso boêmio e bonachão, /passos largos, braços abertos, /convida-me a filosofar com os presidiários e os loucos:/ "é horrível saber que se vai morrer um dia..."/ "o motivo das guerras é aglomeração de idéias, profissões, inteligência e aparência"./ Autodefine-se: pilantra e sem-vergonha./ "A única virtude que tenho são os meus vícios". /Formado na escola dos marginais, na adolescência freqüentou o "curral" /e foi professor de filosofia do primário./ No escritório da Praça, dá expediente até anoitecer./ À noite, quando a praça é invadida por baitôlas de camisola,/ o poeta já bêbado, recolhe-se ao Bom Sucesso, e na sua casa, rua Souza Carvalho,/ depois de meditar sobre o destino da humanidade,/ a utilidade das moscas e a inutilidade do trabalho,/ toma um neozine pra dormir sem pesadelos /e fuma um charuto nativo-artesanal, /mandando ao céu a baforada sórdida da inspiração.
Estive recentemente em Fortaleza com Mário Gomes, de quem ouvi um episódio pitoresco de sua vida. O poeta começou a perceber que não enxergava bem e foi ao oftalmologista. O médico deu-lhe uns óculos, com os quais continuou sem ver direito. Então, buscou outro oculista, que lhe diagnosticou catarata. Mário fez a cirurgia no primeiro olho. Quando foi retirar o tampão, percebeu que não estava vendo nada. Ficou assustado, pensando que estava cego, mas logo notou que as pálpebras estavam grudadas. Foi puxando-as e abrindo o olho aos poucos. E deu um grito de alegria, ao ver nitidamente, do quintal de sua casa, o esplendor das estrelas. O médico recomendou-lhe 30 dias sem beber, até o dia da operação no outro olho. Mário, a duras penas, fez o sacrifício até o vigésimo novo dia. Tomou um grande porre e no dia seguinte foi operar o outro olho. Quando terminou o tratamento fez um empréstimo e saiu comemorando com os amigos «o aniversário do seu novo olho». Distribuía notas de dez reais com todos os mendigos que encontrava. O dinheiro deu para comemorar duas vezes a revitalização dos «esverdeados olhos, outrora profanos».
Nessa mesma ocasião, contou-me outros casos, dos quais lembro apenas alguns. Um deles, ocorrido há muitos anos, na época em que vivia transtornado com os remédios psicotrópicos, foi o seguinte: ao passar em frente a uma igreja, avistou uma moça confessando-lhe ao padre. Aproximou-se do confessionário e falou em voz alta: «olha a sacanagem aí, rapaz!».
Outra danação sua aconteceu, também no mesmo período crítico de sua vida, quando, ao entrar bêbado no ônibus, caíram-lhe as calças. Ao tentar levantá-las, a roupa frouxa não se sustentava na cintura e sempre se desprendia, ficando o poeta em cuecas. Os passageiros, a princípio um pouco desconfiados, passaram a rir copiosamente do poeta, que em sua inocência, em vão tentou vestir-se durante todo o trajeto.
No seu primeiro livro, Lamentos do Ego, de l981, há alguns poemas, escritos em momentos de tristeza, em que se auto-define de maneira rigorosa e punitiva. Em "Auto-Retrato de um Espectro de Gente", começa afirmando ser o mais vil dos cearenses e haver chegado ao extremo da imbecilidade. Declara-se "o besta hipócrita da literatura, um animal em potencial. "Sou a vergonha da sociedade. O palhaço da burguesia. Não sou nada, apenas um monte de carne e osso. Ou, melhor dizendo, um monte de merda. Sempre fui mentiroso, ocioso, onanista e sacana. A única virtude que tenho são os meus vícios. Me odeio e não sei amar ninguém. A morte, minha única mulher, só me aceitará porque é impossível não aceitar. Sou um erro do Supremo Todo Poderoso. O contraste da natureza, a vergonha de todos e de mim". No poema «Bobagem Literária, Mas Real», declara que se sabe "acomodado, alienado, um tanto imbecil e medíocre".
Nos livros seguintes, "Emoção Poética", "Resquícios de uma Paisagem Humana" e "Devaneios e Lamentações", não há tanto o tom de angústia do primeiro, mas prevalece, como marca registrada de sua poesia, o inconfundível estilo irônico e primitivo. No poema do Agradecimento, por exemplo, manifesta gratidão aos amigos pela estima que lhe têm, pelos cigarros e o dinheiro do ônibus: "Obrigado gente, por terem tolerado essa tão vil figura que sou. Não mereço tanta compaixão". Declara-se mau, sofrido e rebelde e a Deus pede perdão pelas blasfêmias. À mãe agradece pelo amor e proteção. Ao pai, pela herança de dizer só a verdade. Aos irmãos, a fraternidade e união. E pede, por fim, que quando o virem passar pelas ruas, digam apenas: "ali vai o poeta, santo e bandido".
2ª PARTE:
Percebi uma diferença no comportamento de Mário Gomes a partir do ano 2003, quando vim de férias a Fortaleza, procedente da República Dominicana, onde servia como diplomata na Embaixada do Brasil. Achei-o magro, agitado, ansioso. Vestia um paletó branco com uma rosa na lapela e fumava um charuto. Espantei-me um pouco com aquela mudança. Mário insistia para fazermos a terceira edição da biografia dele, como prefácio de uma antologia de seus poemas. Fomos conversar num bar próximo à Praça dos Leões. Prometi que financiaria o livro e fomos dali mesmo à RBS Editora, de propriedade do amigo Dorian Sampaio Filho e acertamos tudo. Viajei de volta à República Dominicana, de onde me correspondi eletronicamente com Dorian para corrigir as provas do livro e efetivar o pagamento da edição, que ficou pronta em menos de dois meses. Nesse período, Dorian confessou que o poeta estava muito inquieto. Comparecia todos os dias à gráfica para apressar o término do trabalho e receber os exemplares. O resultado foi uma edição primorosa de Ação Gigantesca, com a biografia que escrevi como prefácio. Na capa colorida, uma foto grande do poeta, fumando um charuto e o subtítulo: «desaconselhável a menores de 18 anos». Mário enviou-me um exemplar, com um autógrafo em que manifestava a sua «eterna gratidão». Junto com o livro, uma carta com os seguintes termos: «eis o mais lindo livro do mundo. Recebi do Dorian 100 exemplares. Reservei 200 pra você. Só posso lhe dizer o meu muito obrigado. Deus tá vendo tudo isso. Tcahu. Até breve, um abraço, Mário».
No ano seguinte, voltei a Fortaleza e o encontrei transformado. Andava pela Praça, gesticulando, agitadíssimo, com um andar meio trôpego, vestindo um casaco surrado, amassado, sobre uma camiseta vermelha e uma gravata rota. Notei que, quando me viu, ele ficou emocionado. Fez um gesto de quem vai chorar… A voz ficou embargada. Contou-me suas agruras recentes. Estava começando a ser discriminado em toda parte. Onde quer que chegasse, queria recitar seus poemas - na Academia Cearense de Letras, na Casa de Juvenal Galeno, num restaurante ou numa igreja, durante um casamento - e em toda parte lhe estavam negando a palavra. Sentia-se rejeitado e se revoltava. Saía xingando quem visse pela frente. Apanhou algumas vezes de seguranças e policiais. Só se sentia seguro nos lugares mais perigosos de Fortaleza, nas ruas escuras e desertas, por onde passa de madrugada e se depara com os piores bandidos e assaltantes.
Ao narrar suas aventuras, gesticula, dá saltos, inquieto, gira, rodopia como um redemoinho humano. As pessoas o observam com um ar de espanto e preconceito. Está esquálido, macilento e macerado. As faces escaveiradas, ele se escora na parede, se remexe e oscila, falando baixo, quase inaudível. Entra no bar e sai em seguida. Perambula em círculo, sem saber que direção tomar. Anda e retrocede. Acompanho-o com o gravador. Peço que repita algumas frases. Ele hesita, avança desnorteado. Escora-se outra vez na parede. Tartamudeia. Todos fogem do marginal alucinado em que se converteu. O falastrão indesejável. Ébrio, delirante, desvairado. Diz que pesava 104 quilos e os reduziu a 75. Voltou a ser o que era quando viajava pra Bahia. «Mexeu comigo, leva pernada, pontapé». «Os imbecis estão cismados». Fala da re-inauguração do Clube dos Poetas, ocorrida no dia 6 de Dezembro de 2003. Depois de 20 anos de recessão. Como sempre, leva nos bolsos papéis – poemas, recortes de jornal, cartas de amigos. «Aderi ao Fome Zero», sabe por que? Tô comendo tantin assim ó». «Mandei os pseudo-poetas dar os cus…». Fala outras coisas jocosas tais como «quando vejo mulher bonita choro: quem não chora não mama». «Mulher bonita é como melancia grande, não dá pra comer só». Depois, une o polegar ao indicador e diz: «colou o dedo, dá pra descolar?».
Disse ele que o poeta Juarez Leitão, ao vê-lo agitado e magro, ameaçou com um «vou dizer ao Márcio Catunda». E ele retrucou: «rapaz, o Márcio não é meu pai, não!». Advertiu-me para que tivesse cuidado com o que os amigos falassem a seu respeito: «tão inventando muita coisa de mim». E narrou o episódio da desavença com Fernando Girão, que segundo ele foi o fato que serviu para desencadear a sua nova fase existencial. Foi no 2003, depois da edição de «Ação Gigantesca». Mário foi a um espetáculo no Cine São Luís, quando a famosa atriz Florinda Bulcão veio a Fortaleza. Ele, vestido em seu paletó branco, avistou o Fernandinho Girão, que ele chama de «Miss Cemitério», e lhe pediu um cigarro. (Trata-se de um rapaz conhecido pelo hábito de comparecer aos funerais de pessoas importantes de Fortaleza). Fernandinho, que estava fumando, disse: não tenho. Mário insistiu: «Rapaz, você tem coragem de me negar um cigarro? Fernandinho foi inflexível: não me perturbe. Eu não lhe conheço. Aí o poeta engrossou: Ah, não me conhece não? Pois vai conhecer agora. E deu-lhe uns safanões. «Todo mundo viu», afirma ele com convicção. Eribeldo Silva e Guaracy Rodrigues estavam presentes na ocasião. Feita a proeza, saiu com esses dois amigos pra tomar uns tragos e voltou depois ao local. Cinco policiais o esperavam na esquina. Os policiais o acusam de haver agredido um cidadão. Mário pergunta: quem? Aquele ali, respondem. Mário puxa do bolso uma página de jornal com sua foto estampada. Mostra aos policiais, dizendo: Eu sou esse aqui, um poeta consagrado. E aquele rapaz é... fez o desenho do dedo em círculo, o polegar junto com o indicador. Aquele….é o «Miss cemitério»… E indagou a um dos policiais: o Sr. é general ou coronel? Sou soldado, respondeu o militar. No final da confusão, Fernandinho mentiu, disse que era engenheiro. O policial disse: cadê o documento? Como ele não tinha, acabou apanhando pela segunda vez, sendo então esbofeteado também pelo policial. Em seguida, Mário pegou um táxi e se mandou. Mas espalhou para todos os amigos aquela grande desfeita do Fernandinho. Dizer que não o conhecia era demais. Segundo ele, esse episódio foi «o início da onda». Desde então, não parou mais de fazer danações e viver deambulando pelas ruas, sem sossego.
No ano de 2005, volto a Fortaleza. Vou à Praça do Ferreira. Tomo um cafezinho e espreito. Objetos, cores e fenótipos pululam no espaço arejado da rua do Ouvidor. Avisto o Temóteo Cavalcante e vou ao seu encontro. Diz que está compondo músicas para o saxofone, numa fase boa. Fala-me do disco que está preparando. Lamenta que Mário esteja em situação precária. Recorda que já esteve na sarjeta, que bebia pra cair e levantava pra beber, mas encontrou a espiritualidade. No entanto, «Mário, que é gênio, de boa índole e de grandes energias, não teve ainda a luz de mudar». Convidou-o para ir ao Centro Espírita Paulo Estevão. Ele vacilou. Não quis ir. Os amigos estão fugindo dele, «dando um gelo». Ele tem que se reencontrar. E filosofa: «o tamanho de um homem é da quantidade de medíocres que querem derrubá-lo». Segundo Temóteo, a ausência do remédio é um dos motivos da mudança. A mãe de Mário adoeceu e não põe mais o remédio na comida dele. «Mário foi um menino precoce, teve uma infância extraordinária». «Será sempre uma criança». Temóteo lamenta a «dimensão degradada do alcoolismo que está prejudicando o seu melhor amigo. «Ele está precisando de ajuda espiritual». «Não gosto que os amigos da Praça curtam com essa nova fase do Mário».
Avisto então vários adeptos da Praça: o gigante Arsênio Flexa, José Leite, Zé Mario Dias, Oliveira Jr, Bruce Braga, Eribeldo Silva, «Deputado», Sérgio Zó e Duarte. Arsênio diz que Mário está perambulando. Tem feito algumas estripulias. Pegou uma garrafa pra bater num rapaz no bar do Inácio, na rua Pedro Pereira com a Assunção… José Leite, que se diz discípulo do Mário, atribui o problema do seu mestre à sociedade terrível, com pessoas sem amor, que não sabem o que é literatura. «O Mário tem razão de ser um revoltado». E conta algumas proezas dele: «Ele não em nada de louco. Um dia, num recital, ele quebrou uma escultura de uma pompa, parece que de autoria do Carlos Emilio. Chutou e quebrou. Outra vez, apareceu na FUNCET (Fundação Cultural de Fortaleza) com um pacote e quiseram chamar o «Esquadrão Auto-Bomba». No pacote tinha um sabonete, três bolachas e uma foto de quando ele era novo. Outro dia saiu correndo com uma faca de mesa atrás do cara que vende rosquinha». José Leite lhe dedicou um poema intitulado «Canto para Fortaleza». Disse que, por narcisismo, Mário não gostou do poema. Segundo José Leite, queria que dissesse que ele é bonito, gostoso etc.
Mário Gomes tá meio perturbado, diz o vendedor de rosca. É um homem da noite. Anda desvairado pelo meio do mundo, nos becos. Às vezes, quando passa alguém, ele xinga. Arsênio diz que Mário ficou furioso, porque ouviu falar que Airton Monte teria sugerido interná-lo numa clínica. Proferiu alguns impropérios contra o Airton. Zé Mário Dias conta que Mário conseguiu, não sabe como, um cartão eletrônico de um banco, que lhe dava direito a sacar determinada quantia. Pediu a sua ajuda, porque estava por fora «dessa zona da tecnologia de informática». Zé Mário entrou no programa e viu que tinha um limite de crédito. Eram nove horas da noite, eles vinham de altas bebedeiras. «Coloca seis prestações de 50», pediu Mário. Zé Mário colocou. Vieram 300 reais de empréstimo, em notas de 50. Zé Mário foi se despedindo e disse: Mário, valeu, tudo bem, deu certo? E ele: não, peraí, cara, eu vou lhe dar uma ponta, você tá na farra, né? Onze horas da noite entraram banheiro do Bingo, em frente à Praça do Ferreira. Mário tomou um banho, deu-lhe 50 contos e se mandou. Zé Mário continuou na farra.
Quando falávamos nele, de repente o avistamos na esquina da Praça. Tinha na mão um saco plástico, cheio de objetos insólitos. Andando em ziguezague, se revira de um lado pro outro. Chega agitadíssimo. Diz que está indignado com a juventude que usa brinco no cu. «É o símbolo da baitolagem». Pergunta a um dos amigos da Praça: «Oliveira, tu ainda pensa em destruir a humanidade?».
Saímos eu, ele, Temóteo e Zé Mario em direção a um bar nas imediações da praça. Sentamos a uma mesa. Mário diz: não posso parar não, se eu paro, eu penso, se eu pensar… Diz que comprou bolo e pão na padaria com a grana que lhe dei no dia anterior. Sentiu falta de umas coisas que a padaria não colocou na compra e foi reclamar. Um sujeito chegou perto dele e pediu o jornal. Perguntou, esse jornal é de hoje? «Não, é do ano passado», respondeu Mário. E perguntou ao sujeito: Você quer o quê? Eu sou da Polícia Militar, disse o cara. Mário perdeu as estribeiras: «E eu tenho nada a ver com isso?» «Vá tomar no cu». Quando a confusão ia aumentando, a mulher da padaria lhe deu o que estava faltando. Ele saiu reclamado: não façam mais isso não, respeitem a gente, suas bostas! E mandou todos pro inferno. «Que felas das putas, rapaz!». Fez um momento de silêncio, virou-se pro Temóteo e perguntou: Temóteo, eu já fui preso alguma vez? Nunca fui. A dona Beatriz Alcântara mandou me proteger.
Ze Mário Dias explica: a secretária da dona Beatriz chegou na Praça, com o ajudante de ordem do Governador e entregou um envelope ao Mário e foi embora. Mário pensava que ia ser preso, porque estava discutindo com o dono do café da esquina que lhe negou um copo de água da torneira. Com medo de abrir o envelope, colocou-o no bolso e só depois de cerca de meia hora é que o abriu e viu que havia 50 reais dentro.
Mário se queixa de que está muito cansado. Foi, a pé, no sol quente, até ao Náutico e ao Dragão do Mar e voltou. Os calos estão ardendo. Em cada dedo tem um calo. E faz um trocadilho: «É milhor calar».
Temóteo recorda o dia em que Mário estava todo de branco, paletó branco com uma pasta. Chegaram duas garotas. Mário, tirando uma onda de médico, olha pra garotas e fala pro Temóteo: pois então, garoto, você aparece no meu consultório às 5 horas, que eu tenho uma cirurgia agora pra fazer.
Saímos depois pela Praça e Mário fez questão de dispensar a companhia dos dois amigos, alegando que queria conversar comigo e eles estavam atrapalhando. Chamou-me pra conversar na Farmácia Osvaldo Cruz. As moças e rapazes, funcionários da farmácia, já o conhecem, mas olham desconfiados pra indumentária exótica dele. O paletó surrado sob a camiseta desbotada, a calça vermelha e o rosto esquálido são de causar espanto. Tem trejeitos e cacoetes engraçados. Está magro, esquálido, mas se vangloria de ter ferro nos punhos. Fala baixo e rápido. Não entendo 60% do que ele diz. Fala e gesticula: «38 mil pessoas morrem no mundo todos os dias como se fossem insetos». «Airton Senna, quando morreu, a humanidade chorou três dias e três noites». Fala com esgares e tiques: «eu como o cu do cão, que poeta diz isso?». «O Sol é o olho de Deus na Terra. Ilumina o Ceará. É energia pura. A cachaça também». Fala sem parar: «O Ceará vai dominar o mundo. Eu tenho medo de cearense. Fui assaltado oito vezes». Diz que lhe quebraram a dentadura e o nariz. Saímos em direção ao estacionamento, próximo à Praça dos Leões. Ele se despede das garotas da farmácia e diz sarcasticamente: «eu deixei de assaltar. Tô no batente, estuprando…».
Na semana do mencionado encontro, visitei alguns amigos e todos comentaram a sua fase crítica. Soares Feitosa disse que Mário está com uma «desfocação interior, está disforme». José Alcides disse que Mário aparece quase toda noite em sua casa e pede vale transporte à sua filha, Jamaica. Às vezes, na saída, urina na calçada, em frente à casa. Zé Mário Dias reiterou a sua preocupação com a fase dissoluta do amigo. Afirma que Mário se transformou. Antes bebia até o início da noite e queria chegar cedo em casa. Hoje não tem hora nem lugar. Dorme nas praças e é visto em muitos lugares, nos subúrbios, na Praça, no Centro Dragão do Mar... Passou por uma fase agressiva que se reduziu recentemente. Os amigos do «deixa-disso» o ajudam. Às vezes o pessoal dos bares não o aceita. Uma vez ele jogou garrafas pra cima. É preocupante o poeta andar pelas noites, sem paradeiro, numa Fortaleza com a criminalidade sem controle. Luiz Edgard Cartaxo de Arruda Jr, poeta e militante da esquerda criativa, disse que ficou impressionado, quando perguntou ao Mário se estava escrevendo alguma coisa e ele respondeu: agora eu sou a poesia. Ele também, diga-se de passagem, é um poeta que vive a poesia e não a escreve. Mas a vida do Arruda, que não é menos interessante que a do Mário, será objeto de outro livro, que merece, de tão rica de episódios e peripécias. Prometo escrevê-lo o mais rapidamente possível.
Voltando ao tema, em agosto de 2005, quando fui a Fortaleza, a caminho de Lisboa, onde iria trabalhar na Embaixada, encontrei Mário Gomes no lugar de sempre: a Praça do Ferreira. Emocionou-se, franziu a testa e passou a mãos nos olhos, como se fosse chorar. Naquele dia seria o lançamento do livro do Ary Albuquerque, no Ideal Clube. Combinamos de nos encontrar. No lugar e hora marcados, liguei o gravador e gravei o seguinte monólogo:
«Um bocado de vagabundo eu botei pra correr. Eu te juro por Deus. Eu tô tão famoso, por tua causa, do Juarez Leitão e de mim mesmo, todo mundo me conhece. Estou muito famoso. O mulherio me adora. Se eu andar da Praia de Iracema até o Mucuripe, pela beira da praia, eu encontro quatro ou cinco mil mulheres de todo canto do mundo e todas me dão bola. Olham pra mim, pelo meu modo de andar. Rapaz, eu me tornei... Se lá o que é...! Deus me protege, juro por Deus! Eu levei três pauladas sábado à noite. Um garçom... Não posso nem me mexer. Eu tava gordo e me sentia fraco. O cara queria brigar comigo e eu evitava. Hoje em dia, ó isso aqui. É ferro (mostra o punho direito). O Airton Monte ficou apavorado porque eu tô todo musculoso. Eu ando o dia todinho e a noite todinha e só sinto que tô cansado quando eu me sento ou me deito. Eu me sinto uma pena, Márcio Catunda. Você sabia que o ser humano tem que saber de filosofia, sociologia e psicologia e se conhecer? Essas quatro coisas, se o homem não souber, ele tá fudido. Ele te que se aprofundar nisso. Se até aos 40 anos de idade ele não conhecer isso, ele tá voando no espaço. E você, queira ou não queira, é génio. Você é de uma serenidade, de uma pureza e de uma calma tão grande que pra mim esse campo de diplomacia pegou bem em ti, porque… Eu passei 34 anos sem brigar, mas dos 16 anos até os vinte, se eu fui pro asilo, algum motivo houve, porque eu passei 4 anos dando porrada em gente. Eu briguei tanto que em São Paulo com 15 anos... Foi bom me internarem, porque eu fiquei como um urso hibernando por 34 anos. A repressão militar ia me matar ou eu ia pra cadeia. Deus fez com que minha mãe, inconscientemente, fizesse essa bondade pra me reter, pra eu voltar hoje com 57 anos, pra fazer justiça à putaria que tá havendo. Há de dois a três mil vagabundos assaltando em Fortaleza todas as noites. Eu enfrento todos. Eu ando com um charuto aceso de madrugada. Se chegar perto de mim, eu jogo nos olhos deles a fumaça. (Mostra uma caneta de ferro que usa pra se defender). Eu fui assaltado oito vezes. Quebraram meu nariz e roubaram até minha dentadura. É uma guerra civil. Eu sozinho enfrento os bandidos. Sozinho na noite. Se eu lhe disser que enfrento dez, quinze? Rapaz, eu domino os caras no papo e na sugesta. E essa canetona de ferro? É carimbador de cara de otário! Eu levei três pancadas nas costas e só não matei o cara porque não quis, pois se eu matasse iria pra cadeia. Tem gente que diz que eu tô louco. Você, como psicólogo, você acha que eu tô doido? Você é um cara conscientizado, rapaz. Você acha que um cara que lê minhas poesias … Se eu disser pra você que ninguém tem coragem de andar comigo? Ninguém, atualmente. Sabe o que aconteceu no dia 23 de Julho? É o dia do meu aniversário. Convidei mais de duzentas pessoas pra minha casa. Você pensa que foi alguém? Não foi nenhum. Sabe por quê que não foram? Porque pensam que eu tô doido. Minha sorte, já pensou 40 amigos meus? Não ia caber no quintal lá de casa. De quinta a domingo, na Praia de Iracema tem uns playboys com mulheres e eu sou tão querido ali. Eu sou um homem feliz, viu! Em Abril desse ano, na Fundação Cultural, o Povão, o Zé povinho e os artistas começaram a perambular. Eu tomei 4 uísques. Lai vem a doutora Cláudia Leitão. Eu resolvo dar a ela um presente. Eu pego um chinelo, que era de cerâmica, era uma escultura, que cai e quebra. O Barros Pinho reclamou, deu bronca. Mário Gomes, você quebrou a cerâmica! Eu quebrei o que, rapaz? Sérgio Braga me deu uma grana e eu fui embora. Dormi, e acordei às três da madrugada e voltei pra Fundação Cultural. O chinelo parecia de verdade...».
«No dia 23 de julho, no Shopping do Benfica, eu vou ao lançamento do livro do Manuel da Nóbrega, o apresentador do programa «A Praça da Alegria». Ninguém me dá bola, porque eu tô magro e pensam que eu tô doente. Mas a doença que eu tenho é incurável e se chama excesso de tesão. Eu sento em frente à livraria, num banco que servia de decoração do ambiente. Vem o Pró-Reitor BC Neto. Eu me levanto pra cumprimentar ele e pego num poste postiço e o poste cai. Estronda um papoco, pá! Eu me levanto, apavorado. Cai o poste e uns 15 seguranças, puxa-sacos, correm todos parecendo umas feras. Não o Mário não tem culpa, diz o BC Neto. Aí eu me sento de novo. E os seguranças armados com os oião. Aí eu digo: Esses grandes empresários do shopping… e eles ficaram encabulados e foram embora. E eu dou uma risada e digo: tem culpa eu? Saio embriagado, dou uma volta na cidade toda e quando olho tô em frente ao shopping de novo. E aí eu me apavoro. Mas de repente, lá vem o ônibus. Vou pra casa.
«Um moço chamado José de Deus, poeta de araque, lançou um livro no Náutico. Quando o Juarez Leitão me arranja uma graninha pra tomar um uísque. Eu quis declamar um poema e ele disse: não pode. Aí eu mando todo mundo tomar no cu, em voz alta, chuto cadeira, o caralho. Com raiva, temperamental, o pensamento rápido e embriagado. Aí saio...
«Recentemente muda a diretoria da UBT e eu já tava com a fama de doido, o pessoal pensava que eu tava com Aids. Quando eu chego lá, eu peço ao diretor, um major da Polícia Militar, pra eu declamar um poema e ele disse que não podia. E aí eu me levanto e digo que a Polícia Militar atualmente tá assaltando. Por coincidência, no jornal daquele dia, saiu a notícia dos 5 PM que me assaltaram de metralhadora avenida Dom Manuel, de madrugada, me pegaram e assaltaram a minha cueca. E outra coisa: dá licença que eu agora vou fumar maconha e chupar boceta. Meu irmão, puta que pariu, chamou a segurança e eu me mandei, antes que me prendessem. Um detalhe: aquele bicho um coroa fortão da Academia Cearense de Letras, um tal de Nunes, diz que é valente. Eu disse a ele: você não é valente, porra nenhuma! Você é um bosta, rapaz, um trouxa, um otário.
«O Raimundo Alencar, pseudo-intelectual, falso poeta, trouxa, otário botou dois PM olhando pra mim. E não me convidava pra declamar. «Mário Gomes você tem que declamar poesia suave, romântica, pras velinha». Rapaz, quem sabe o que eu devo declamar sou eu, seu porra! Aí, sabe o que aconteceu? O seguinte: eu deixei de andar lá. Quando eu tô a fim de vender algum livro, alguma grana que eu quero pegar, aí eu vou pra porta, tanto da Academia, como da Casa de Juvenal Galeno. E quando não me deixam entrar, sabe o que acontece? Aqueles velhinhos ficam com medo de mim. Em frente à Academia, tinha um carro na frente atrapalhando a Dra. Iná Soares. Ai eu empurrei o carro na marra. E os vigias, uns puxa-sacos, vieram tomar satisfação. Peraí, a mulher é minha tia, se manque!
«Eu tenho enfrentado uma guerra civil. Eu não dei tapa em ninguém ainda, eihn. Dra. Beatriz Alcântara mandou a Polícia Militar me proteger de longe. Numa solenidade, no Dragão do Mar, quando eu fui falar, eu disse: nós temos atualmente um dos melhores governadores de todos os tempos, o Dr. Lúcio Alcântara. Meu irmão, esse homem me abraçou, depois. Aí, num dia de quarta-feira pela manhã, eu morrendo de sede, pedi água da torneira na tabacaria da esquina da Praça. Quando eu tô bebendo a água, chega o dono do estabelecimento e diz que eu não podia beber aquela água, mas só a Indaiá, do Tasso, de 40 centavos. Aí chegou a policia. Os home chega e diz, vem cá, você quer prender o rapaz porque tomou água da Cagece? Aí, sabe o que aconteceu? Eu tomo umas 4 cachaças e volto, fazendo discursos, explicando a discriminação, o preconceito safado. Quando chegam três policiais, da parte da Dra. Beatriz Alcântara, com um envelope lacrado. Puta que pariu, tão me prendendo na certa! Fiquei com medo de abrir. 15 minutos depois eu abri, tinha 50 reais dentro. Podia comprar uns duzentos copinhos e jogar na cara do sem-vergonha. Mas deixei pra lá, fui beber cachaça com o Sérgio Zó e o Oliveira Júnior. No outro dia o cara tava cabisbaixo, filho da puta.
«Fortaleza tá uma cidade muito mais bonita do que qualquer cidade do Sul. Cheia de turistas japoneses, tem boates de holandeses na praia de Iracema explorando as nossas garotinhas, putinhas meninas. Eles enfiavam o dedo no cu da menina e filmavam, pra rir da nossa cara lá na porra da Holanda. Aí, sabe o que foi que eu fiz? Eu comecei a quebrar de porrada as coisas lá. Por que, como é que se bota o dedo no cu da menina, filmando pra gozar da nossa cara? Depois duas semanas depois, a polícia soube disso e prendeu 28 safados de porrada.
«Num lançamento no Center Um, eu capotei bêbado. Acordei e caminhei pela Desembargador Moreira até o Náutico. Lá me sentei. Eram 2 e meia da madrugada. E dormi. Quando acordei, tinha um cara levando o meu relógio e meus óculos. Comecei a fazer discurso e disse que o roubo era combinado com a polícia e os garçons. Os PM desentocaram dos buracos uns 40 ladrões e encherem eles de porradas, pancadas. Que diabo é isso? Eu provoquei a revolta dos PM e dos ladrões! Porrada, pontapés, puta que pariu, é ladrão correndo. Eu acordei todo mundo. Aí eu fui embora. Tu me acredita, amigo meu, que, olha, Hitler desse tamainho, nunca deu tapa em ninguém e ia dominando o mundo na conversa? Ó, eu descobri um negócio interessantíssimo: isso aqui (aponta para o próprio corpo) é o casarão do espírito, isso aqui, a matéria humana, é o espermatozóide. E o espírito é o pensamento e a voz. Quando o pensamento e a voz saem, aí a matéria apodrece. Quando a pessoa sente dor, a dor não é da matéria, é do espírito. Quando você anda, é o espírito, porque a matéria é inerte. Tanto é que defunto não chora. Eu descobri isso aí, porque a lua me deu isso aí. Olha o detalhe: a lua cheia dá influência. O que você pedir ela lhe dá. Há vários tipos de espíritos, alguns elevadíssimos. Nós somos sete bilhões na face da terra. Morrem 38 pessoas por minuto, como se fosse inseto. Os eleitos de Deus não. O Airton Senna, quando morreu, a humanidade chorou três dias e três noites. Os poetas são homens eleitos por Deus. O poeta verdadeiro. O pseudo-poeta, não! Ó, um detalhe: Deus não gosta desse pessoal da Bíblia, de igreja. Eu digo isso porque eu sinto isso. Ó um detalhe: Deus, também, o seguinte: quando Deus… o ser humano tem 100 mil anos na face da terra. O último animal que Deus botou na face da terra foi o homem. E a sacanagem que fizeram nesses cem mil anos de guerra, estupro, roubo, o caralho. Sabe por quê? É coisa do diabo. Quando Deus colocou o raciocínio no homem superior aos outros animais, sabe o que o diabo fez? Botou sete pecados capitais no ser humano. O pobre tem a inveja, o rico tem a cobiça, o gordo tem a gula. Mas tem um pecado chamado vaidade, que o diabo vai se foder por causa disso. Que é um pecado suave que os artistas adquirem. A vaidade, o que é? É bater um papo legal, botar uma roupa bonita, mostrar uma arte. Atualmente nos temos alguns artistas que iluminam os trouxas, os imbecis. E outra coisa: o dinheiro é o que escraviza a humanidade. O dinheiro e o compromisso. O besta, o homem, por questão e taradismo, casa com uma mulher, pensando que ama de araque, só pra comer o cego, o priquito, a boceta, aí ele se compromete. Ele tem que se sujeitar à mulher, aos filhos, à casa e então vai ter que trabalhar. O único animal que trabalha é o homem. Se é a formiga, é uma formiga de araque, porque a formiga… Me diga uma coisa. O homem é escravizado ao compromisso, à responsabilidade. Uma coisa que eu descobri, ó: se o pavão é bonitão, o urubu não é preto? O pavão não voa. O urubu é preto, come carniça, dorme nas montanhas e dura muitos anos. O pavão, não. Ele é bonitão, mas é preso na terra, não voa. Eu prefiro ser urubu. Me diga uma coisa: se o homem tem cem aviões, duzentos navios, muito dinheiro em banco, ele come essa porra? Não é melhor ter um prato de comida a toda hora, água e comida? Então, eu prefiro que eles comam seus aviões. Rapaz, uma vez eu tava preso em Belo Horizonte, numa cadeia, porque eu tava sem documento. Aí o delegado olhou pra mim: Mário, me diga uma coisa, você tá há um mês aqui, você é barra limpa. E botou uma barra de ouro e um prato de comida. Aí você quer o quê dos dois? Doutor, eu vou querer o prato de comida. O ouro, o Sr. manda alguém comer aí. Aí ele mandou me soltar. Antes disso, fazia 15 dias que eu tava preso naquela porra, com 11 assassinos dentro. Eu dominei eles no papo. E eu mandei o cara tomar no cu. Ah, isso você já botou no livro. Sim, vem cá, sabe o que aconteceu? Duzentas entradas na polícia e nenhum processo. E outra coisa: 17 viagens pelo país, pelas capitais invocadas, Rio e São Paulo, sem um tostão no bolso, sem mentir, sem roubar e sem enganar ninguém, viu? Mas me diga uma coisa, Márcio Catunda, eu com 32 anos de idade, conheci uma menina de 14, cearense, que um hippie enganou, e levou pra Recife - veja o meu caráter. Ela me disse: você me leva pra Salvador e eu te pisirico. Quando eu tô na estrada com ela de noite, ela não quer pissar. Já pensou, você passar, porra (fala chorando), 28 dias, porra, com uma mulher no mato? Se fosse um sacana, não estuprava e matava, não? Se fosse um sacana, de noite. Já pensou você passar 28 dias com uma menina, no matagal e você não comer? Nós entramos num caminhão um vez com 4 caras. E eu pensei, Mário vão te matar e.. Aí eu falei: pára o caminhão aí! Eles pararam e eu desci com ela de madrugada.
«Márcio Catunda, aqui em Fortaleza tá uma coisa horrível. A população cresceu, o número de imbecis aumentou, os camelôs, quando me vem… Eu sou uma pessoa cinematográfica, eu sou uma pessoa hollywoodiana. Cê sabe que, se o Gregory Peck olhasse pra mim, ele iria beijar meus pés? Porra, porque eu sou um cara - num tô me gabando não, não é megalomania não - eu me conheço, porque, pô, eu sou cara, eu tenho os olhos verdes, branco, com um corpo atlético atualmente, e outra coisa: um andar diferente, rapaz, esses bichos, artistas de cinema, sabe por que eu não assisto mais filme? Primeiro, porque não tem nada de novidade, e outra coisa: esses artistas de cinema, eu perdi a admiração por eles. O Alain Delon, Charton West, esses caras, sabe por quê? Eles são escravizados, eles são mandados pelo chefão. E aí sabe o que eles fazem? Eu não, a minha história é um filme fabuloso. Florinda Bolcan, tá aqui em Fortaleza, chegou hoje de manhã. Ela, o ano passado, viu a tua biografia sobre mim, e ficou encantada. Levou pra Hollywood. Aí rapaz, eu vou te contar, minha vida, queira ou não queira… Aquele Silvério da Costa, lá de Chapecó, mandou uma reportagem pra mim que eu perdi, mas um amigo meu deu uma cópia, porra minha vida, Márcio Catunda, é uma vida tão…Eu… Sabe por que eu me orgulho de mim? Sabe o que minha mãe disse pra mim, quando eu tinha 17 anos? Cê sabia que minha mãe era costureira? Ela pegava uma revista, aquela revista Clara e tal e ela fazia igualzinho ao que ela tava vendo na fotografia. Em vez de ela cobrar 500 reais, ela cobrava 5 contos. A minha mãe nunca foi à praia, nunca vestiu calça comprida, nunca botou batom, nunca foi a cinema. E outra coisa: tá com 35 anos que o meu pai deixou minha mãe. A minha mãe tá com 35 anos que não sabe o que é pica, que não sabe o que é homem. O único homem da minha mãe, porra, (chora um pouco), foda, rapaz. Meu pai também é um cara, hoje em dia, hoje em dia… Meu pai também é um cara fabuloso, um cara daquele, passa 34 anos sem ver a família, sem saber se morreu alguém. Ele não é covarde, ele é muito é macho. Ele voltou o ano passado, magrinho, velhinho, 83 anos. Chegou chorando. E minha mãe: não. Ninguém aceitou. Ninguém reconheceu o homem. Um estranho no ninho, rapaz. Aí, passou uns 15 dias e queira mudar tudo. Não dá… Eu cheguei - «papai não dá pro Sr. ficar aqui. O Sr. bateu muito em mim. O Sr. passou muito tempo sem andar aqui. Não dá. Aí ele ficou encabulado: é.. errei.. Aí eu soube, depois de dois meses, eu que me arrependi. Puta que pariu, vou procurar meu pai. Fui buscar ele na Santa Cecília. Sabe o que aconteceu? Ele tava numa casa com 4 mulheres, pô. É, com 4 meninas no quarto. Papai o Sr. mentiu pra mim, disse que tava desprezado, numa casa dessa? Aí ele, aquela risadinha. Meu pai é malandro vagabundo. Meu pai é de Caucaia. É da família Ferreira Gomes. Essa família Ferreira Gomes, rapaz, domina o Ceará todo. Lampião era Virgulino Ferreira Gomes. Era tão respeitado… Rapaz, não tem bronca».
Em novembro de 2006, encontro-o na Praça. Ele chora quando me vê. Diz que ladrões lhe roubaram tudo. Até as cartas que lhe escrevi, queimaram. Fomos tomar um café. Brincou com as meninas da lanchonete. Veio o Temóteo e recebeu uma bronca dele, por querer roubar minha atenção. Acusou-o de só querer me pedir dinheiro, de não ter deixado ele me ver em ocasiões anteriores. Veio até o meu carro. Queria conversar. As pessoas olham, com um riso meio suspeito, quando vêm a figura. Paletó surrado, com camiseta por baixo, barba de mendigo. Anda trôpego. Comecei a anotar algumas frases irreverentes que ele dizia: «quando me perguntam, Mário você ta melhor?, eu respondo: vou começar a dar pontapé em prego. Eu nunca bebi, eu bebo pelo meu irmão que morreu. Ninguém faz uma árvore, nem uma banana. Não existe a palavra ex-viado. Mulher com mulher dá jacaré. O bi é sacana. É o gilete. É a mulher que come o homem. A boca tá onde? O amor é divino, o sexo é animal. A galinha representa os baitolas. Bebe água, olha pro céu e diz: Deus, dai-me uma boceta, que estou cansada de imitar os baitolas. As meninas de Fortaleza estão com os dedos caliçados de tanto pensar em mim. O Dr. Alessandro Cresce é a 8ª maravilha do mundo. Eu voltei a chorar. Quem não chora não mama. Mulheres, se vocês querem gozar com a minha cara, se esfreguem em mim».
Resolvi comprar uma fita pra gravar todas aquelas maluquices. Fui parando em diversas lojas. Não havia fita cassete. Dado momento, ele desconfia. Onde é que cê tá me levando? Pensou talvez que eu fosse de levá-lo ao manicômio. Queixa-se dos irmãos, que falam nessa hipótese, porque acham que ele está doido. Rimos do assunto. Chegou ao meu apartamento com muita sede. Bebeu quase toda a garrafa de dois litros de água mineral e fez outro depoimento maluquíssimo, cheio de ironia critica e mentiras geniais. Andava pelo apartamento, falando, enquanto eu o seguia com o gravador na mão e gravei o seguinte:
«Eu senti a senti a necessidade de mudar e acabar com a prepotência dos artistas e dos leões. Deus fez o homem pra acabar com a prepotência dos leões. Os artistas terráqueos, o homem por ficar em pé, domina o leão. Os artistas iluminam os leigos, os operários, filhos de Deus. Ele mandou multiplicar o casal Adão e Eva que vivia numa selva de mata e era pra eles viverem numa selva de pedra. Pediu ajuda ao diabo que fez o preto, pro branco se mancar. Os sete pecados capitais: o primeiro foi a inveja que fez Caim matar Abel e o último foi a vaidade, que os artistas adquirem para salvar o mundo. Quando ele fez a mulher, esqueceu de botar o juízo, o pensamento. Deus botou o pensamento dela na boceta. Te juro. E botou o juízo da galinha na cabeça. Você pensa que o homem come a mulher? É a mulher que come o homem. Onde está a boca? A mulher não precisa levantar nada, basta dar um sorriso e abraçar o mundo cm as pernas. Uma carioca, uma mulher só, foi com 400 homens uma vez, no Rio de Janeiro. Antigamente, ia com seis mulheres, hoje em dia tá em extinção, quase. É difícil encontrar um homem de verdade. Os rabo-de-cavalo, os bissexuais, o homem dando o rabo e comendo, os giletes, os veins vão morrendo.
«Veja só o detalhe que aconteceu. Não deu certo não, porque… Sabia que a salvação da humanidade, a Carla Perez aquela cientista baiana, que deu aquela cobertura da bunda, o bumbum, ela ficou bilionária pela bunda, cujos segredos, pra o pobre ficar logo rico: sabia que a mulher mais linda do país era um macho chamado Roberto Close, que era amante do Erasmo Carlos? E mulher descobriu. Sabia disso não? Venha cá. Sem vergonha. Aí abafaram e a mulher tornou-se agora a boceta maior do mundo, né? Fizeram o transplante, né? Transplante, não. Arrancaram e fizeram uma boceta. Sabe o que aconteceu? Surgiu o travesti como a Roberta Close e a Carla Perez com o bundão, que uma mulher sem uma bunda é como uma casa sem quintal. A bunda é superior até ao ... a bunda tem duas bandas, a bunda nas estrelas. O Erasmo quis abafar e fez aquela música: «diz que mulher é sexo frágil» - malandro, né? - «que mentira cabeluda...». Aí, a mulher: que nada, rapaz, eu não te quero mais não. Vai com o teu macho, com o teu Robertão!
«Meu compade, olha aquele cara de Santa Catarina, chamado Roberto Carlos, que tá bilionário, tá cheio de muié, sabe o que aconteceu? Pô, toda música dele é divina, sabe por que? Ele quando tinha 17 anos um trem passou pela perna dele. Ele deu um grito tão grande. Em Santa Catarina ele tem uma perna de aço, sabia disso não? Escorregou, a dor foi tão grande... Acontece que a mulher dele morreu de câncer e o filho nasce cego. Ele dá um bilhão pra ter uma perna igual a nossa assim. Me diga uma coisa: a música dele não é divinal? Ele não é o rei da juventude até hoje? E ele tem uma cara antipática, né? Me diga uma coisa: Deus é justo. Sabia o que Raul Seixas, genial, disse antes de morrer? «Dizem que o mundo tá se acabando, mentira, ainda nem começou… Sabe que ele disse, fiquem aí, eu vou embora. Sabe o que ele disse: a música dele gozou com a humanidade toda: perdi o medo da chuva… Eu cheguei a esse ponto. Rapaz, tanto vale a vida como a morte, o pior de tudo eu já passei. Pro cara chegar a dizer isso é porque ele tá bem. Ele tem tudo. Sabe como eu descobri? Olhe, o Rui Barbosa disse uma vez: o mundo é de todos e de ninguém. Foi ou não foi? Sabe como eu interpretei? Porque, enquanto eu for vivo, tudo é meu e quando eu morrer nada é meu. Sabe o que eu descobri também? Que o homem ou a mulher, ele é o experimento do pênis do pai chamado, espermatozóide de carne e osso. A mulher deu a luz? O quê? A mulher deu o divinal pensamento da vagina. A vagina dá o pensamento. A mulher tem a vagina que dá o espiritual. Aí tem que respeitar a poesia. Aquela porta de onde nos saímos é sagrada. Aquela portinha é tão sagrada… Você não pode voltar atrás não, porque é muito pequeno, e você cresceu. Tem que levar chuva mesmo. Aquilo é tão sagrado, rapaz, quem vê, rejuvenece. Porque o cara casa por causa daquilo. É uma rã perigosa. Aquele lugar, eu fico grilado, é um negócio fora do comum. Cê vendo de uma vaca, cê num liga não. Cê vê o da mulher, cê fica abismado. Olha, aquele Itamar tava pra morrer. No Carnaval, viu aquele panorama assim e hoje tá uma criança. É o lugar mais escondido que Deus botou nas muié. Rapaz, eu tenho um poema que diz assim: porra, o homem é tão sujo que dá o maior valor aquilo de onde só sai mijo.
«Cê sabe que aquele nosso livro tá tendo sucesso. Rapaz, você com a tua literatura... Me chamam de grande poeta. Rapaz, não me chame de grande não, que tá dando problema. Mário Gomes, você não é erudito não, como o Márcio Catunda, mas você é de uma profundeza popular como eu nunca tinha visto. Por gentileza, Mário Gomes, a poesia... Hitler pousou na mão de Deus e disse: vós criastes o homem e eu o destruirei. Imediatamente, Deus fechou a mão, o destruindo. O cara chega: hora nova é seis horas, na velha é sete, viu? Por que você não tem hora? Meu relógio, roubaram. Você está sem hora, né? Tu está. Eu estou senhor. O cara ficou com uma raiva desgraçada».
Convidei-o a sentar no sofá. Ele me olhou de forma estranha. Dei uma risada. «Não é isso não, eu te conheço há muito tempo», ele disse. E continuou: «Você é uma pessoa que não sabe o que é. Uma vez eu mandei uma carta pra você. Um rapaz incapaz de arrancar uma flor. Rapaz, a natureza é uma coisa que a gente não explica não, viu bicho. Por que aquele rapazinho anda o mundo todinho e o homem ainda é uma criancinha e ninguém mexe com ele? Ele não se apavora. Tem coisas que nem Deus explica. O Flávio Carneiro, que o povo condenava, o cara que deu seis tiros numa mulher. Ela desonrou ele, botou chifre e ele, pra acabar com essa putaria, deu seis tiros na cara dela. Sabe quem defendeu o Flávio? Foi uma mulher. Te juro, quem defendeu foi uma mulher advogada. E é a filha do cara. O povo ficou tudo sem graça. Te juro por Deus. Você devia saber disso, você sabe de tudo.
«Eu tenho compromisso, passei 34 anos hibernando, sem fazer nada, por isso que eu não tenho nada na vida. Meus amigos são ricos. Eu perdi muito tempo. Agora me soltaram. Um dia eu disse: minha mãe, eu ainda vou ser presidente do Brasil, eu vou ser conhecido no mundo todo, e tá acontecendo, viu! Eu nunca fui gabola, eu nunca disse pra ninguém que era Mário Ferreira Gomes. Eu nunca digo pra ninguém que eu sou poeta. Eu sempre digo... Rapaz, quem é você? Eu sou um bando de bosta, eu sou uma merda. Eu quero que cê me ajude agora, que me de um pouco de água pra eu molhar a cabeça (de cima). São vinte e duas cabeças e me levar até em casa pra ver a minha mãe, rapaz, enquanto tá cedo. Eu vou dirigir o carro, eu nunca dirigi não, mas vou dirigir hoje».
Ofereci-lhe a possibilidade de tomar um banho completo. E ele disse: «Na volta, na volta. Deixa comigo. Eu sei disso, rapaz, escute, ô Márcio, entenda, Márcio, entenda». Enquanto lava o rosto e a cabeça na pia, ele insiste pra que eu o leve em casa, pra ver a D. Nenzinha, pois queria «levar um pedacinho de pão pra ela».
E continuou em seu incrível monólogo: «Se Deus não fosse brasileiro, seria cearense, mas se ele não fosse cearense, seria brasileiro. Quem sabe ver, lê a vida. Vamos supor que você vê uma multidão, se você olhar assim você vê, se você ler, você sabe o quê que se passa, tudo ali, mas se você não sabe ver, não sabe de nada. Quer outra frase, minha? Não é poética não, mas o sr., por gentileza, aguarde um segundinho, enquanto eu molho a cabeça de cima».
Passou pasta nas mãos feridas e continuou: «Sabe o que é? É que eu sou odontólogo? Sabe o que é isso? Eu me machuquei com os alicates». (queria dizer que era dentista. Depois passou pasta de dente na boca e gargarejou. E prosseguiu: «Eu inventei o banho cowboy que em todo canto se usa».
Eu já lhe havia dado algum dinheiro. Ele disse: «eu já tenho a grana que você botou no meu bolso, vou comprar um bolo». Sugeri a padaria que há no mesmo quarteirão do meu prédio. Ele respondeu: «não, eu conheço Fortaleza, eu nasci aqui». Rimos.
Ele continuou: «Vou pra minha casa, tô cansado». Viu uns cds sobre a mesa e perguntou: «você tem Raul Seixas aí? Isso é relíquia, nem vou levar não. Eu sei o que é isso. Eu prefiro um livro. Se tiver algum sobrando, que você não queira mais...» Fomos ver os livros no quarto onde estão guardados. Ele diz: «Aqui pra nós: o Zé Almeida Pereira pode ser genial, mas que ele é atrapalhado, ele é. E é pecador demais, viu? Só pensa em sexologia. Rapaz, eu não sou mentiroso não. Um dia eu cheguei na casa dele, ele tava mostrando a bunda pra mim, nu numa rede Eu disse, rapaz eu não quero saber disso não!». Eu sou turista do Bom Sucesso. Ando de bermuda, todo sujo, imitando os turistas internacionais. Eu já lhe suportei muito. Por enquanto, já não lhe suporto mais. Tem gente que quer conversar com você só pra ferrar uma graninha. Eu digo: rapaz, seja mais direto, o homem não é trouxa! Quer ensinar reza a pade? Diga logo o que cê quer, não é grana? Você sabia que a fisionomia é o retrato da alma? Pela fisionomia, você manja o cara logo. É telepatia. Me diga uma coisa: a mulher nova, bonita e carinhosa não é pra o homem gemer sem sentir dor? Panela velha é que faz comida boa? Eu fui criado na bandidagem. Não é isso não. É pelo aspecto físico e das minhas idéias. De susto eu tenho matado muita gente. Aquele rapaz, de chapeuzinho, lá da Praça do Ferreira, morreu de susto. Quando me viu, tomou um susto tão grande que morreu. Aquele Torquato Neto disse: eu vou morrer de bala ou de susto. O cara do chapeuzinho cuspiu no pão, cuspiu na comida dele, pra eu não pedir comida a ele. Lambuzou. Pergunte ao Temóteo… Ele ficou cismado comigo. Vagabundo, ponta pé, murro... Um dia eu encontrei ele na Praça dos Leões num sábado. Ele disse uma piada comigo, eu peguei uma garrafa de água mineral Indaiá, (do Tasso, porque o Tasso vende a garrafa, mas a água é do homem lá de cima, né?) e joguei. A água explodiu, como um vendaval. De susto, o cara caiu pra trás. Ele fez uuuhhh e caiu pra trás. Eu tanta risada que, em vez de pegar o ônibus, eu fui a pé pra casa, de tanto rir.
«O Milton Dantas me ofereceu, por intermédio da psicóloga, pela minha obra, que é o meu patrimônio nr 1, o que eu aceitasse de digno, sabendo que eu era carente: um carro, apartamento, tudo, pela minha obra literária e tal. O pessoal ficou com inveja de mim e saiu dizendo que eu recusei porque o homem era homossexual. O homem da alta sociedade, ajuda quem tem talento, ia fazer um negócio desse, rapaz? Falaram isso pra atrapalhar a minha vida. Mentiram, dizendo que o homem era e que eu tinha que usar o homem. Pessoal maldoso do caramba viu, bicho! Só porque o homem ia me dar uma oportunidade dessa, aí só porque o pobre do homem tem um problema lá das particularidades dele, que eu não posso aceitar não. Nada disso. Você acha que eu vou fazer uma coisa dessas, desrespeitando a sociedade brasileira mundial. Pessoal maldoso. Com inveja da minha pessoa. Filhos das putas, rapaz. Me atrapalharam, querendo me destruir, atrapalharam.
«Você me conhece. Eu expulsei 17 crentes que vieram com a Bíblia, com papo furado de igreja pra mim e pra minha mãe. Vamos parar, porra, vá pa puta que pa… foi... Não é loucura minha não, juro. O meu bairro é uma guerra. Eu sou discriminado na minha casa pelo meu, um tal de Zezinho. O Evaldo, meu irmão que morreu com 31 anos, morreu de desgosto. Uma filha morreu de um tiro. A Verusca fugiu com um tal de Sebastião pra São Paulo, três meses depois voltou grávida».
Mário, vamos falar umas coisas mais alegres, eu disse. «A alegria vem depois», ele contestou. E continuou: «Gilberto Gil não disse que só a guerra traz a paz? Quer ver coisa hilariante? Escreva isso pra servir de exemplo...».
Reclamou do calor. Eu disse: você tá com muita roupa pra andar no Ceará, tá parecendo um paulista. Ele respondeu: «É que eu passo a noite por aí. Às vezes chove e tal. Eu não mudo de cara não, mas mudo de aparência, de indumentária».
Observei que ele tinha uma meia preta e outra vermelha. Tem no bolso uns e um boné vermelho. «Uma menina me deu», disse ele. Você tá parecido com o Zé Ramalho, eu disse. «Toda mulher fica doida por mim», ele comentou. E prosseguiu: «Um cara passou de madrugada e eu tava com 32 mulheres no quintal. Elas me adoram. Elas são perceptivas. Em São Paulo, eu era contratado pra ficar na porta das lojas de disco, pra atrair as meninas».
Você era um galã antigamente, né? Perguntei.
«Antigamente. Eu não sou o mesmo não. Eu sou coroa. Naquele tempo eu era adolescente, menino vei. De modo subconsciente, eu fiquei igual aos galãs de cinema de Hollywood. Eu sempre admirei os bandidos e os play boys. Eu sou um plebeu play boy, porque curto a vida e sou bonito. Tem muito cara rico, fazendas, filho de industrial, o caralho, que é fei pa porra, e é incapaz de arranjar as mulheres que eu arranjo. Caras de uma barriga enorme, covardes. São uns pobres coitados. Nem na Segunda Guerra Mundial se vê igual. Eu fico em frente à casa do Aluísio Gurgel, esperando até ele abrir a porta. Fico esperado, olhando a janela até abrir. Tenho um livro inédito, «Revelações Divinais», que ta com o com Aluísio. Vicente Freitas, de Bela Cruz, tem originais meus também. Se um dia eu me encontrar, numa estrada deserta, sozinho, e me encontrar com Deus, o diabo, Lampião e o Satanás, eu como o cu do Hitler, eu dou murros e pontapés no Satanás e em Deus dou beijos e abraços.
«No poema «Sonho Diabólico», uma luz imensa me aparece e eu fui dizer que fui por inferno e tinha comido o cu do Cão. Toda a humanidade tem medo do Satanás e eu o desmoralizei em literatura. Pra provar que focinho de porco não é tomada, ele passou nove anos dando murros em mim. Me libertou tá com um mês. Sabe o que ele fez comigo? Ele tocou fogo na minha casa, ele matou meu pai, matou meu irmão. Meu irmão começou a comer a filha dele. Ele quebrou o meu nariz duas vezes. Uma aranha caranguejeira me mordeu nos dois pés. Eu tô todo quebrado. Eu ando pela rua brigando. Inda hoje eu dei três pancada em poste. Ele me libertou quando eu disse que era brincadeira. Mas depois eu disse: pois vá tomar no cu de novo seu filha da puta. Ele deu uma risada e me libertou.
«O Juarez Leitão disse, naquele livro da Praça do Ferreira, que eu era gente boa, poeta, mas era cachaceiro, vagabundo, malandro, mulherengo, louco. Me causou danos morais. Até nisso eu tenho sorte pra ganhar dinheiro. Fui ao Fórum pra ser indenizado. Mas ele tá certo. Se ele dissesse: você é baitola, ladrão, você ia ganhar. Mas como ele disse: você é vagabundo, pilantra, safado e cachaceiro… Eu fui espancado na nuca, eu sou espancado em todo canto que eu chego. Eu fui espancado no Náutico. Esse cara é louco. Os meus amigos com medo de mim. Passam por mim e não falam. Ele é doido. Tudo que eu faço é permitido».
Bebe água e continua falando: «Tô morrendo de sede. Eu só tenho inveja de mim mesmo. Mulherada, mulheres, vocês querem criar juízo é só me criar! Meu nome é Juízo Rodrigues da Silva. E outra coisa: se vocês quiserem gozar com minha cara, se esfreguem em mim. Tô com frio agora. Deus, sentindo a necessidade de mudanças, pra acabar com a prepotência dos leões, fez os artistas. Os artistas terráqueos. O leão anda de quatro pés e não sabe que vai morrer. O homem sabe. Os artistas iluminam os leigos. Que são operários. Adão e Eva numa selva de mato. Vamos multiplicar esse pessoal e fazer uma selva de pedra. Os sete pecados capitais. A inveja. Caim matou Abel. A vaidade do artista vai salvar o mundo. O resto não presta. Esqueceu de fazer a mulher. E se esqueceu de colocar nela o juízo e o pensamento. O diabo botou o pensamento dela sabe aonde? Na boceta. E botou o juízo da galinha na cabeça. Você pensa que o homem é que come a mulher? É a mulher que come o homem. A boca tá aonde? A mulher não precisa levantar nada. Só basta dar um sorriso e abraçar o mundo com as pernas. Uma mulher só, foi com 400 homens uma vez no Rio de Janeiro. Hoje em dia, o homem tá em extinção. É difícil encontrar um homem de verdade. Rabo de cavalo, os bissexuais e homem dando o rabo e comendo gilete».
Em agosto de 2007, vou à galeria de artes plásticas do Tota (Antônio Severino Batista), o amigo que lhe dá sempre uma sopa ou vitamina de frutas, quando ele aparece por lá. Tota me fala da incongruência no comportamento do Mário. Diz que tem pena dele, na situação em que ele se encontra agora. Comenta que Mário considera o remédio que tomava a causa do seu atraso de vida. Diz que os medicamentos estavam acabando com ele. Já não toma os comprimidos e por isso está melhor. Pediu ao Tota uma televisão usada. «Minha santa mãezinha precisa». Tota lhe deu de presente uma televisão velha. Falamos da vida dissoluta do poeta, que dorme na praça. Os bandidos não o atacam. A miséria do Mário não atrai os ladrões. Na falta do que fumar, faz cigarros só de papel. Enrola papéis do chão, acende e fuma. Dorme no chão dos restaurantes do Centro Dragão do Mar. Os gerentes o expulsam. Ele sai xingando.
Falando no homem, ele chega de repente, como se adivinhasse que eu ia visitar o Tota. É incrível. Parece que adivinha onde estou. Chega, joga o saco de plástico no sofá e começa a monologar, caminhando do sofá à porta, indo e voltando. Diz que deu «41 mil pontapés na bunda do Fernandinho. Ele ficou desbundado». Trouxe uma bonequinha de palha pra filha do Tota. Tem tesouras, fotos, revistas fones de ouvido, flanelas, uma miríade de objetos dentro do saco que conduz.
Saímos caminhado pelo centro Dragão do Mar. Observo que ele está mais mendigo, sujo, esquálido, desanda num monólogo junto à estatua do Patativa. Acha que a postura do poeta é de pedir esmola, com a mão estendida, declamando. Mistura assuntos sucessivamente. A gravata é só um pedaço de pano. Às vezes murmura, às vezes fala. Isqueiro na mão, casaco encardido, gravata rota, sob a camiseta. Calça empoeirada. Fala sobre o consciente, o subconsciente e o inconsciente. Fala de um tal Chico Picadinho que em São Paulo picotou de gilete uma morena. A música do bar, mais alta que sua voz, não escuto bem o que ele diz. Ele prossegue no monólogo. «Raul Seixas tinha uma lucidez de ácido inoxidável». O rosto magro, cheio de rugas. Fala, fala, fala. Levanta do banco, fica em pé, gesticulando, move as mãos e gira o corpo, numa postura encurvada, os passos meio trôpegos. Cheira a mendigo. É o mendigo a poesia cearense. Coincidentemente, o cantor do bar canta «Maluco Beleza». A música em sincronia com Mário, fã de Raul Seixas. Ele baixa tanto o tom de voz outra vez que quase não ouço nada. Entendo um pouco do que diz agora. Recorda momentos da vida. Diz que entende porque não como carne. Diz que um tio dele morreu porque comeu carne toda a vida – apodreceu de tanto comer carne. Por isso que na Índia a vaca é sagrada. Fala de uma descoberta divina: «tudo que se come é merda antecipada». Cita Bocage. «Só me casarei com uma mulher que coma biscoito e cague guaraná». Com uma memória impecável, lembra que da capa de um dos meus livros, o Estância Cearense, tem um desenho da casa do meu avô.
Um menino de rua aparece e pede esmola. Ele acusa o menino de tê-lo incomodado no dia anterior. O garoto sujinho olha e diz: Eu? Mário pede desculpas. Eu digo ao menino que Mário é poeta. O menino pergunta: o que é poeta? Explico: é um escritor, um homem que lê. Ele pergunta: e guarda na mente? Sim, é isso! digo. Mário manda que ele vá à livraria do Sérgio Braga, no segundo andar do Centro Dragão do Mar, e veja o livro do Juarez Leitão, que fala a respeito dele. O menino pergunta: é verdade, é?. É, respondo. Mário diz que dará o livro ao garoto. Saímos em direção à livraria. O menino lembra – olha o saco. Mário ia esquecendo o fardo de molambos que carrega.
Como sempre, fala de suas aventuras pelo submundo da noite. «Não tenho medo de andar na selva de pedra. Eu dominei a cidade toda. De todo lugar eu fui expulso. Agora, não. Eles me chamam e eu é que boto banca». De repente começa a difamar um conhecido: «andam dizendo por aí que fulano largou a mulher… Ele come o cu de um garçom em troca do almoço diário. É um cara genial, mas é vigarista, analfabeto e invejoso».
Mário leva um saco do qual tira panos velhos, um cigarro e dois pares de óculos de pernas quebradas. Veste o paletó com duas camisetas por baixo. Os molambos caem pelo chão, ele se agacha pra recolher. Pega alguns e outros ficam. O vento carrega alguns e ele os apanha. Tem até um saco de café. Perguntei-lhe pra quê. «Porque eu sei fazer café. Só não sei fazer açúcar», diz ele.
No dia seguinte, vou ao Centro Dragão do Mar e encontro o poeta Jorge Furtado, amigo e admirador do Mário. Jorge me conta outras peripécias do andarilho notívago. Diz que ele mendiga pedaços de pizza nos restaurantes do Dragão do Mar. Dorme na chuva, com o pescoço encostado à parede. «Estavam rindo dele ontem, porque ele lavou a cabeça no tanque. Ele sofre por não ter mais o reconhecimento que teve. Acha que todos os amigos deveriam ter com ele a mesma consideração de antes. Ele, que deu muitas entrevistas a jornalistas, ultimamente apareceu no jornal só uma vez, numa foto de mendigos da Praça do Ferreira. Um dia apareceu uma repórter de televisão no Dragão e ele ficou rodeando ela, achando que ia ser entrevistado. Ela foi embora e ele jogou as coisas no chão e saiu desolado».
Comento com Jorge Furtado que conheci Mário há muito tempo, no Clube dos Poetas. Falo de sua mãe, prostrada numa rede. Digo que dei a ela, pelo ano 1999, uma cadeira de rodas.
Jorge lamenta que nem todos os gerentes de restaurantes tenham a dignidade de dar algum resto de alimento ao poeta. Ele soube, através de outro amigo, que em alguns estabelecimentos ele é ameaçado com pedaços de pau. Mesmo assim ele invade os restaurantes e pede pizza aos garçons. Se disserem que não tem, ele pede uma perna de barata ou de calango. Mesmo ameaçado, Mário discute com os garçons e proprietários quase todas as noites. Ás vezes, quando lhe dão algum presente, ele devolve, dizendo que não pede esmolas. Se alguém lhe der dinheiro dizendo que é pra comida ele diz: «se o dinheiro é meu, eu faço o que quiser». Certa ocasião uma moça comprou-lhe uma empada. Ele colocou no bolso. Alguns amigos acham que ele deveria ser internado numa clínica de repouso, onde poderia ser assistido. Mas, para um poeta que ama tanto a liberdade, é preferível mendigar pelas ruas que ficar enclausurado entre quatro paredes.
Em fevereiro de 2008, o reencontro em Fortaleza. Ele apareceu no lançamento do livro Dormir, talvez sonhar, de Oswald Barroso, no Teatro José de Alencar. O vigia sorriu com certa cumplicidade ao ver o poeta. Disse que ele toma banho todos os dias na torneira do banheiro do Teatro, onde os porteiros e funcionários o toleram, por saber de quem se trata. Disse que Mário lava a roupa na torneira, fica só de cueca e bate a calça e a camisa nos bancos de madeira do pátio do Teatro, até as secar. Dali fomos em direção meu carro e seguimos para o Centro Dragão do Mar, que ele diz ser o palácio dele. No carro, confidencia-me algo sobre uma mulher da Praça, mas fala tão baixo que não escuto. Depois diz que amanheceu sentado no chão. Diz que leva cantada de mulheres, mas recentemente levou uma surra, de paus e pedras, de umas garotas, que iam passando e que lhe disseram: nós vamos ali ganhar um dinheirinho ali… E ele respondeu: quando vocês lavarem bem essa coisa…
Diz que foi expulso de muitos restaurantes. Mandou à puta-que-pariu o pessoal da Academia de Letras que não aceitou que ele participasse das reuniões nem recitasse seus poemas no recinto. Eu disse: espiritualmente você não tem semelhança com ninguém. Mas fisicamente está parecendo o Zé Ramalho. Ele disse: ele é que parece comigo. Recordou dos 20 anos, quando arranjou uma namorada e o pai dela disse: não namore com esse cara que ele é louco. Saiu do manicômio há um mês. Foi em plena ditadura militar, quando os presepeiros eram recolhidos ao hospício. Fala outras coisas ininteligíveis, das quais só entendo a frase «o Salazar era solteirão…». Observo-lhe a fisionomia deteriorada. Está com o rosto deformado, enrugado, desdentado. O nariz torto.
Escreve uma garatuja, diz que está em hebraico. Conta a história de Sansão e canta: «índia seus cabelos». Fala da lua. Está em quarto crescente. «Até os lobos do Himalaia sofrem a influência da lua». Cita Olavo Bilac: «o verdadeiro mérito não gosta de se mostrar». Guarda no saco de plástico que carrega uma garrafa e diz: «o homem só sente duas coisas um pelo outro: admiração ou inveja». E acusa determinado amigo de ser maníaco sexual. «Fui visitá-lo um dia e ele estava deitado na cama, nu, esticando a bunda pra mim»
- Vou caminhar, Mário.
- Você trouxe a bengala?
- Poeta, a gente vai se despedir.
- Já tá despedido. A indenização vem depois.
Em março de 2008, cerca da meia-noite, encontrei-o no Centro Dragão do Mar. Maltrapilho, sujo, a barba por fazer, o cabelo ralo. Falando muito, mas com absoluta lógica. Convidei-o a jantar e coloquei-lhe no bolso 50 reais. Pediu-me para levá-lo em casa. Decidi levá-lo. Seria uma oportunidade de esclarecer o motivo da situação em que ele se encontra. A casa fica longe, no bairro do Bom sucesso, a cerca de 2º quilômetros da Beira Mar. Era mais de meia noite. Chegando, vi dona Nenzinha na calçada, sentada numa cadeira. Parece não ter lembrado de mim, mas pediu ao Mário que trouxesse uma cadeira. Só havia uma cadeira suja, no quintal da casa, além daquela em que estava dona Nenzinha. Preferi não sentar, pois estava apressado. A casa era um caos. Parecia que um furacão havia passado por dentro. Sem móveis, só havia uma cama sem colchão e uma rede. Entendi porque o poeta não dorme em casa – não tem cama. Havia um cheiro de mijo em toda parte. Tudo encardido, empoeirado, sujo. Apareceu o Zezinho, irmão dele. Bêbado, sem camisa, um barrigão enorme. Disse ao Mário: por que você trouxe o Márcio, não tem lugar pra ele dormir aqui. De fato, sobre o estrado da única cama da casa, sem colchão, havia algumas roupas do Mário. Nada mais. Zezinho disse: «minha mulher é médica. Faz transplantes de coração e rins… Repetiu umas três vezes essas frases e acrescentou: não se preocupe, vou vigiar o seu carro. Aqui só tem gente civilizada…». Mário me disse: toda a minha família pirou. Só eu estou lúcido.
Despedi-me dele, de dona Nenzinha e de um rapaz negro da vizinhança, que lhe fazia companhia a ela na porta de casa, quando cheguei. Eu disse ao jovem – dê uma ajuda a eles, que todos estão precisando. Ele aquiesceu, com um gesto. Liguei o carro e segui pela Avenida José Bastos até a Beira-Mar.
Encontrei, naquela mesma noite, o poeta Jorge Furtado, que comentou o drama que o poeta vive cada dia e cada noite, largado pelo mundo, errante, sem paradeiro. «Vi crianças e adolescentes jogando pedras nele. Ele se baixou para se proteger. É a lei da selva. Ele espanta os meninos agressores com cacos de vidro».
Conheci, através do Luiz Edgar Arruda, um cineasta interessado em filmá-lo. Quer fazer um curta-metragem. É o Zébatista, um carioca que vive em Brasília e veio a Fortaleza porque ouviu falar do poeta e do ensaio biográfico que escrevi a seu respeito. Encontrou o livro na Biblioteca Pública, junto ao Centro Dragão do Mar, depois de procurar em vários sebos. Fez-me diversas perguntas. Falou-me do roteiro que já escreveu. Disse que o filme será em preto e branco, pois assim tem mais carga poética do que o colorido. Terá o apoio do Hélio Rolla, do Sérgio Pinheiro, do Kazane, do Alano Freitas e outros artistas plásticos, para discutir a poesia do preto, do branco e do cinza. Pretende que o filme seja narrado por Marília Pêra, que tem uma entonação poética. Diogo Vilela poderia interpretar os poemas, pois tem um fundo de personalidade semelhante ao do Mário. O fundo musical seria do Temóteo Cavalcante, com o Sirino no violão. Perguntou-me se eu sabia em que ano Mário foi preso na Bahia, quando o confundiram com o bandido que furava as bundas das moças com um canivete. Verifiquei que não tinha o ano, na biografia que escrevi. Porque escrevi tudo de forma negligente, sem atentar para a ordem cronológica. Escrevi tudo do jeito que estava na fita gravada com o depoimento dele, sem perguntar coisas essenciais como as datas e encadear tudo cronologicamente. Vi que no livro há uma referência a uma viagem a Salvador, no ano de 1977, logo antes de ele contar o episódio do maníaco. Acho que foi por aí, mais ou menos, digo ao Zébatista. Certeza, mesmo, só se falássemos com ele, mas, do jeito que ele anda, duvido que tenha a recordação clara das datas. Não custa tentar... Lembro que ele me mostrou certa vez a reportagem do jornal da Bahia. Ele andava com os jornais dobrados e ensebados nos bolsos. A essa altura, é bem provável que tudo isso tenha se perdido. A casa dele é um pardieiro, uma gruta vazia. Diz ele que as sobrinhas e os irmãos dele subtraíram-lhe todos os bens...
Em abril de 2008, encontrei-o de noite, no Dragão do Mar. Estava sentado numa cadeira de um dos restaurantes, sob a chuva. Já encharcado, o paletó surrado de sempre, as costas curvadas, magro, subnutrido. Mas a conversa lúcida, fazendo trocadilhos e dizendo frases irônicas. Aproximou-se um sujeito jovem, forte, bem vestido e disse ao Mário: você está muito elegante… O poeta imediatamente respondeu: «eu não lhe conheço, você é um baitola, um viado!». Você é que é!, respondeu o cara, fazendo um gesto de querer agredi-lo. Ele também fechou os punhos, mas deu dois passos pra trás. Vi a coisa feia e pensei que ia terminar em porrada. Convenci o poeta a retirar-se dali. Fomos para outra área do Centro Dragão do Mar. Conversamos sob uma árvore, debaixo da chuva. Pedi-lhe que entrássemos no carro e tentei deixá-lo na esquina mais próxima, mas ele ficava contando casos e falando coisas incríveis sobre a própria família e se gabando como sempre: «há muitas mulheres gamadas em mim». «O Argemiro assalta banco. A mulher dele vive me procurando com segundas intenções... Desde ontem eu procuro uma coisa que não existe. Há trinta anos roubaram uns cocos do meu quintal. O Messias Holanda fez uma música sobre isso».
Dei-lhe dinheiro para tomar um táxi e ir pra casa. Confessou-me que não dorme em casa porque os seus irmãos e as sobrinhas lhe tomaram tudo quanto tinha. «Quê que eu vou fazer em casa, se não tenho mais nada lá?». Diz que o bairro do Bom Sucesso está cheio de ladrões e assaltantes. Que um dos vizinhos foi em cana porque roubou e feriu um taxista. Ficou muito chateado porque roubaram até as roupas da dona Nenzinha. Mas diz que está contente «porque finalmente, estudantes deputados, a sociedade em geral reconheceu o meu valor».
Quando voltei a Lisboa, Zébatista mandou-me o roteiro do filme por e-mail, pedindo-me comentários. Explicou assim o projeto: «Não sei se já estou entrando no meu limiar de loucura, mas creio que é possível fazê-lo e que só um filme poético ombreará a vida do Mário. No fundo, o filme será acompanhar o Mário por um dia, com imagens do momento, «inserts» de locais de Fortaleza e depoimentos de pessoas que com ele têm um relacionamento muito forte, com narração de alguns episódios e declamação de alguns poemas. As pessoas que escolhi foram você, o Temóteo e a Nancy, irmã dele.
Zébatista rastreou e encontrou as reportagens que saíram no jornal Diário de Notícias, de Salvador, a respeito do episódio da confusão do Mário com o tarado do canivete, ocorrido em 1977.
Ouvi certa vez pessoas comentando que o problema do Mário Gomes seria uma psicose depressiva. Mas como explicar o todo esse delírio de auto-suficiência? Como entender o paradoxo entre a sua racionalidade total nos assuntos e a incapacidade de cuidar melhor do próprio corpo? Do ponto de vista humano, eu diria que ele se apaixonou pela vida de tal maneira que se desesperou. Deambulando trôpego pela, hoje, cruel cidade de Fortaleza, o poeta que transpira sentimento transformou-se numa explosão de sensibilidade. Se os amigos já não o suportam, ele se revolta e arruma confusão. Reincidiu na vida caótica, na inquietude, inconformado com o imediatismo interesseiro da maioria, com a manipulação das opiniões pela minoria, sempre desajustado diante de uma organização social perversa, em que prevalecem o egoísmo, a maledicência e a inveja.
Mário Gomes é um caso de hipersensibilidade, cem por cento emocional. Um tipo que a psiquiatria certamente não explica. Penso que Freud, Jung, Lacan e Erich Fromm ficariam perplexos diante das travessuras dele. Porque se trata de uma criança que brinca de sonhar até mergulhar fundo no pesadelo. Brinca com fogo e já não se importa de sair chamuscado. É um poeta que abriu toas as portas da sensação para viver a poesia com o corpo e com a alma, nunca com o intelecto.
Os bons amigos da Praça do Ferreira, o Temóteo Cavalcante, o José Mário Dias, por exemplo, são os seus únicos terapeutas, porque o conhecem na intimidade. Eles sabem que Mário Gomes, um ser fora do comum, nasceu predestinado ao egocentrismo irreverente. Não veio ao mundo pra adaptar-se aos preconceitos e hipocrisias da feroz sociedade humana.
Mário Gomes teve sempre uma filosofia própria, embora reconheça a autoridade de alguns ídolos (Raul Seixas, Vinícius de Moraes, Zé Ramalho, Fernando Pessoa, e alguns poucos porta-vozes visionários do verbo iluminado. Só reverencia espíritos de alta estirpe. De resto, sabe que a maioria das pessoas tem malévolas intenções e só pensa em dominar, explorar e monopolizar o poder. Mário é uma afronta a todo poder abusivo. Nasceu para hostilizar a hostilidade. E vive, até hoje, exercendo a mais absoluta liberdade. Não dar satisfação a ninguém exceto à própria consciência, não escravizar-se às convenções maliciosas, rejeitar tudo quanto limite a criatividade, eis a sabedoria que todos gostaríamos de praticar e não termos a coragem. Ele teve. Mas pagou um preço exorbitante. Hoje vive maltrapilho, esquálido, andarilho das noites sem destino. Dorme onde o sono determine, alimenta-se quando aparece alguém que o convide. Na verdade, viveu sempre à margem do sistema. Não se adaptou a nenhum trabalho, porque rejeita o autoritarismo. Cultivou vícios perigosos, por não aceitar restrições à sua liberdade.
Tinha um anjo da guarda: Dona Nenzinha, sua mãe que o esperava sempre na casinha do Bom Sucesso. Quando ele sumia de casa e percorria o submundo de outras cidades, a velhinha o esperava ansiosa, rezando pra vê-lo um dia pacato e disciplinado. E um dia a sua esperança surtiu efeito. O poeta ficou manso, sereno, chegando em casa às 10 da noite e tomando regularmente os remédios. Ocorre que Dona Nenzinha adoeceu, e com ela também o Mário, em conseqüência. Os amigos disseram que a falta do remédio foi o que causou a recaída na piração. Mas acho que foi, sobretudo, a enfermidade da mãe que o abalou e o fez voltar à boemia desregrada. E ele, que já não é o garoto dos tempos das extravagâncias em Salvador, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, agora sofre mais os estigmas da vida dissoluta, da noite de vigília alcoólica e do caos mental. Perde-se pelos caminhos, tenta recitar os seus poemas em todos os eventos culturais da cidade e sai xingando se não permitem, tornou-se excessivamente crítico, monopolizando a conversa e pronunciando, em voz baixa, não sem razão, os maiores impropérios contra a espécie humana. Mas apesar de todo o delírio existencial Mário nunca perdeu por completo a percepção racional, em sua consciente postura face às vicissitudes da vida. Seu discurso é irreverentemente lúcido, crítico e fundamentadamente indignado. Nunca foi um deprimido. Conservou sempre a estima própria, gabando-se como um galã ou um gênio incompreendido. Se ele abusa da saúde física e mental, é certamente por causa da angústia crônica de conviver entre a condição humana e a paixão de viver. Desse conflito entre a situação precária da vida material e a ânsia de voar no pensamento é que surge o drama do desajuste. Aliás, esse foi sempre o problema humano, um problema que se acentuou no tempo do romantismo e que hoje em dia adquire proporções endêmicas.
Em síntese, somos todos Mários Gomes reprimidos, porque sufocamos em nós o paroxismo da sensibilidade e a expressão da liberdade total. Só ele, entre todos os que o estimamos, é verdadeiramente autêntico, pois sabe mostrar o seu protesto com toda a intensidade dos gestos, atitudes e palavras e algo mais.
APÊNDICE:
«O Pau cantou no Cine Ceará» (crônica de Eribeldo Silva, escrita no livro Bastidores da Praça do Ferreira (e outras coisas mais), publicado em 2005:
Noite de estréia do V Cine Ceará, festival de lançamento de filmes brasileiros, que se realiza em Fortaleza, nas dependências do Cine São Luis na Praça do Ferreira. Surge nosso poeta maior, Mario Gomes, metido em um terno branco impecável, camisa vermelha, lenço vermelho no bolso do paletó. Vem fumando seu último charuto, cumprimenta a amiga e atriz internacional Florinda Bulkan (Nossa musa do cinema internacional Florinda Bulcão, cearense lá da Serra de Uruburetama) uma sumidade. Mário Gomes passa por Florinda e suas amigas e vai em busca de sua turma , os poetas da praça. Não encontra a turma, o charuto se acaba, está sem dinheiro, precisa fumar, é compulsivo. Fica irritado e vai tentar filar um cigarro de algum conhecido, que porventura esteja no evento.
Mário Gomes percebe que em frente à entrada do Cine São Luis está o Fernandinho (dos velórios) e ele está fumando, - que sorte - pensou Mário e foi em sua direção. O Fernandinho, que é pernóstico, estava conversando com dois garotões, atores globais, quando sente a presença do poeta trata de se esquivar fingindo não percebê-lo. Mário, sem nenhuma maldade, interrompe a conversa e fala para o Fernandinho: «Fernandinho, por gentileza me arranja um cigarro, cara!». Com muita educação argumentou o poeta.
Fernandinho, que não pode ver «gente importante» que esquece os amigos menos privilegiados, desconversou.
- Por favor, não nos perturbe. Eu não conheço o senhor. Falou e deu as costas para nosso poeta.
- Não me conhece? Não me conhece não, seu «viado», pois vai conhecer agora. Falou isso e meteu a mão nas «fuças» do Fernandinho, que saiu correndo.
Nós estávamos no restaurante dos advogados, não sabíamos de nada do que houve lá embaixo na praça. Mário adentrou no recinto muito nervoso, pediu um cigarro ao Duartinho, uma dose de uísque ao Guará e uma cerveja ao Sérgio Zó, bebeu tudo como se fosse água e foi embora. Não demorou cinco minutos, ele voltou repetiu os mesmo pedidos e permaneceu agitado sem falar nada.
Decidimos por descer e ir prestigiar o evento Cine Ceará. Quando chegamos ao térreo, fomos em direção à praça, na esquina da Tok Discos, deparemos com cinco policiais da PM e um pequeno aglomerado de curiosos. Ficamos surpresos quando um dos policiais abordou o poeta Mário Gomes e olhando para o Fernandinho (que estava metido no costumeiro terno preto) indagou: «é esse o cidadão que lhe agrediu, doutor?». Fernandinho pôs-se atrás da turba e vociferou: «foi ele sim, foi ele que meteu a porrada em mim!» - Mário parou sem demonstrar nenhum medo. Sua agitação sumiu e deu lugar a uma calma em seu semblante. Mário sem olhar para seu acusador, fitou o policial que o havia abordado e falou: «o senhor é o quê? Coronel, Capitão, Tenente ou Sargento?» - O policial olhou para os companheiros de farda e falou: «sou Soldado…» Aí, o Mário sentiu-se mais à vontade e disse: «Seu Soldado, o negócio é o seguinte. Você sabe quem eu sou? Sabe quem é Mário Gomes?» - O soldado espantado e tendo à frente a figura de um guerreiro «Viking», um guerreiro normando ou coisa parecida, respondeu um tanto desconcertado: «não! – Eu não sei quem é Mário Gomes não!»
Bem, o poeta meteu a mão por dentro do paletó, como se fosse sacar uma arma, daquela que fica por baixo da axila. Os policiais tentaram acompanhar o movimento do poeta, e para surpresa geral de todos Mário Gomes saca uma página do Jornal Diário do Nordeste, plastificada, onde no caderno três, DN Cultura, estava a foto do poeta Mário Gomes, de corpo inteiro, vestido igualzinho àquela noite, terno branco, camisa vermelha, com um lenço vermelho no bolso do paletó, numa pose quase de perfil, com um charuto entre os dedos. A fotografia preenchia a página toda, deixando estreitos espaços para matéria, que tinha como título: «Mário Gomes, poeta santo e bandido». «Taqui!» Exclamou Mário Gomes, abrindo a página de jornal plastificada que ele conduzia em forma de canudo. Os policiais ficaram atrapalhados, o que parecia comandar o grupo pegou a página do Jornal das mãos do poeta e deu uma olhada na foto e depois no próprio Mário que por coincidência estava idêntico em todo na foto, até mesmo o charuto. O policial desculpou-se pelo transtorno caudado e solicitou que Mário fosse para outro lugar para evitar qualquer tipo de confusão, ainda pediu que nós o acompanhássemos, por precaução.
Tudo resolvido. Ah!Não! O acusador, que fora vítima das porradas do Mário Gomes, tentou argumentar contra os policiais para que os esmos prendessem o poeta. O Fernandinho, metido a doutor, apresentou-se como sendo engenheiro aos policiais, não queria ficar desmoralizado e «apanhado», ficou insistindo muito, os policiais notaram que o «Fernandinho» era inconveniente e muito «fresco» e que já estava enchendo o saco. Um dos policiais perguntou ao funcionário da Prefeitura Municipal que administrava a Praça do Ferreira, quem era mesmo aquele tal Fernandinho, que se dizia «doutor engenheiro», o senhor Cícero disse que o Fernandinho não era «porra nenhuma» e que ele era um cara chato.
O policial ficou indignado e veio tomar satisfação com o suposto «doutor engenheiro». «Ei rapaz! (já não era mais cidadão). Você é mesmo engenheiro? Fernandinho ficou atônito e respondeu «cla-cla-ro!» Gaguejou e aparentemente estava nervoso. Os policiais se aproximaram e fecharam o círculo em volta do impostor de títulos e o intimaram a mostrar-lhes a carteira do CREA. Ele, Fernandinho, enrolou como pôde e não tendo mesmo nada que o identificasse como sendo o que dizia que era, simplesmente levou mais umas mãozadas para deixar de ser imbecil e «caboêta», como nos contou Mário Gomes. Ah! Engenheirozinho de Araque!